O fígado na Malária

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)



Quem sobreviveu ao ano de 2005 deve se lembrar da epidemia de malária que assolou Manaus e outros municípios do Estado do Amazonas. Segundo fonte e dados fidedignos do Sistema de Epidemiologia de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde (SIVEP-MALÁRIA), um total de 229.333 casos de malária foram notificados em todo Estado. Em Manaus, ocorreram 64.385 casos, ou seja, 28% de todos os casos no Amazonas. Grave o problema, não?


Durante a epidemia, a malária não escolheu ricos, remediados ou pobres, invasões ou condomínios de luxo, pedintes ou executivos, soldados ou coronéis, médicos ou engenheiros. Conheço dezenas de pessoas e tive vários pacientes que foram acometidos pelos agentes causadores da Malária por mais de três vezes, isto só no ano de 2005. Em 2010, diminuiu bastante o número de casos de malária, mas infelizmente a malária ainda encontra-se presente em quase todas as zonas da rica capital do Estado do Amazonas.


As perguntas mais freqüentes dos pacientes acometidos pelos dois parasitos mais comuns da “doença malária” (plasmódio vivax ou falciparum) são sempre as mesmas. Como está e como vai ficar o meu fígado depois da malária? É verdade que podemos ter malária e hepatite juntas? A malária dá hepatite?


Neste artigo tentarei explicar aos leitores que ainda não tiveram malária o que acontece quando uma pessoa é infectada por um dos agentes da doença. Os infectados pelo plasmódio vivax, ou seja, malária vivax, apresentam uma forma clínica menos agressiva do que os acometidos pelo plasmódio falciparum, sendo caracterizada por febre, dor de cabeça, calafrios, suores intensos, dor nos músculos e articulações. Alguns cursam com problemas digestivos, tais como: falta de apetite, enjôos, vômitos e diarréia. Refere-se maior inchaço do baço em relação ao do fígado. A malária vivax pode se tornar crônica. O tratamento é simples e grande parte dos pacientes cura-se. Todavia, pode ocorrer retorno da malária vivax em alguns pacientes. A primaquina, uma das drogas utilizadas no tratamento da malária vivax, pode ocasionar grande destruição das hemáceas (glóbulos vermelhos) e ocasionar o aparecimento de icterícia (coloração amarelada dos olhos e da pele). Daí os pacientes dizerem que a malária pode estar associada à hepatite (processo inflamatório no fígado).


Com relação à forma mais grave da malária, ocasionada pelo plasmódio falciparum, podemos observar manifestações clínicas mais graves do que o verificado na malária vivax. Inicialmente, os sinais e os sintomas são idênticos aos da malária vivax. Mais ainda: com o desenvolver da doença, pode ocorrer paralisação dos rins, comprometimento do cérebro, os pulmões ficam encharcados com sangue e observa-se uma anemia muito grave pela destruição das hemáceas. É comum observamos entre pacientes com malária falciparum a presença de icterícia (30 a 40%).


O aparecimento da icterícia nos pacientes acometidos na malária falciparum deve-se a dois fatores: o primeiro é a destruição das hemáceas pelo plasmódio, ocasionando produção exagerada de bilirrubinas (produto final resultante da destruição das células do sangue). A icterícia (olhos e pele amarelos) surge quando as bilirrubinas ultrapassam a cifra de 1,5 mg por 100 ml de sangue; o segundo fator é a destruição das células do fígado (necrose) em decorrência da ação direta do plasmódio falciparum.


Em suma, podemos dizer que a malária compromete o fígado da seguinte maneira: após a picada do mosquito, os parasitas da malária se alojam nas células do fígado (hepatócitos), onde se multiplicam, rompem as células do fígado e vão infectar as hemáceas. Bem, se o parasita da Malária se aloja no fígado, ele provoca hepatite? Na maioria dos casos, sim. A presença de icterícia estaria relacionada não só com a destruição das hemáceas pelo plasmódio, como também pela lesão direta do parasito da malária (plasmódio) no fígado. Por outro lado, apesar de termos uma “hepatite malárica”, verifica-se uma forma muito branda de hepatite. Tanto é assim que, em razão do comprometimento apenas transitório do fígado, a hepatite desaparece e o fígado se regenera totalmente após a cura da malária.


A “hepatite malárica” ocorre com maior freqüência entre pacientes infectados pelo plasmódio falciparum, principalmente nas formas mais graves. O maior problema da malária não é a discreta hepatite que o plasmódio pode provocar ao se alojar temporariamente no fígado e, sim, o comprometimento de outros órgãos vitais tão importantes, como os rins, o coração, os pulmões e o cérebro.