O fígado e a doença dos pezinhos

José Carlos Ferraz da Fonseca

Especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


Em 2007, tive contato clínico pela primeira vez com dois pacientes cosanguíneos, do sexo masculino, portadores da Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF) ou doença dos pezinhos ou, ainda, doença de Andrade. Confesso que fiquei tenso durante a consulta, pois meus conhecimentos sobre a enfermidade eram apenas teóricos.

Tratava-se de dois irmãos, com pais originários do norte de Portugal. O paciente mais velho apresentava problemas neurológicos graves e o mais jovem, sinais iniciais da doença. O episódio mais triste da história da família foi o relato da morte da mãe, mais ou menos 10 anos antes, provavelmente, em decorrência da referida doença.

O motivo da consulta com os dois irmãos era o encaminhamento futuro para transplante hepático. Quanto à doença dos pezinhos, infelizmente, o papel do hepatologista clínico é apenas este, ou seja, o de encaminhamento.

É importante frisar que o fígado é apenas um dos órgãos responsáveis pela produção de uma proteína plasmática anômala, a transtirretina (TTR met 30), que causa a moléstia.

A doença dos pezinhos foi descrita pela primeira vez pelo notório neurologista português Dr. Mário Corino da Costa Andrade, em 1952. A enfermidade é conhecida também como a “Doença de Andrade”. Ao publicar sua descoberta, o cientista revelou as principais características da doença: comprometimento de núcleos familiares de origem portuguesa; caráter hereditário e altamente letal; paresias (perda parcial dos movimentos voluntários ou automático dos membros), particularmente das extremidades inferiores; diminuição precoce da sensibilidade à temperatura e à dor, começando e predominando nas extremidades inferiores; perturbações gastrointestinais; e perturbações sexuais (disfunção erétil) e dos esfíncteres.

A doença tem início, insidiosamente, quando o paciente tem entre 20 e 40 anos e conduz a um desfecho fatal após 10 a 15 anos de sofrimento.

Em países de colonização portuguesa, há relatos de milhares de casos da doença dos pezinhos. Nos Estados Unidos, país com percentuais de alta imigração portuguesa, é comum também o aparecimento da doença entre americanos nascidos de pais portugueses.

Qual seria o mecanismo de manifestação da doença? Normalmente, o fígado produz uma proteína denominada de transtirretina (TTR). Essa proteína é responsável pelo transporte, no plasma e no líquido cefalorraquidiano, da tiroxina (hormônio tireoidiano), dos lipídios e do retinol (vitamina A). Quando existe mutação no gene da proteína TTR, esta se torna instável e é responsável pelo depósito anômalo de uma substância fibrilar denominada de amiloide, sobretudo nos nervos. É o deposito da substância amiloide no tecido nervoso que ocasiona as formas graves da doença, como descreve o descobridor da Polineuropatia Amiloidótica Familiar. A substância amiloide impregna vários órgãos, principalmente os nervos periféricos, rins, coração, estômago e intestino delgado.

No estágio final da doença, o paciente se encontra deprimido, acamado ou numa cadeira de rodas e com escaras disseminadas. Apresenta ainda, de uma forma geral, fraqueza muscular, atrofias dos membros inferiores e superiores. Na maioria dos casos, caminha inexoravelmente para a morte por caquexia e/ou infecções intercorrentes.

Estudos experimentais da equipe da professora Maria João Saraiva, do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto, constataram que a administração, em ratos transgênicos, de um ácido biliar produzido naturalmente no organismo é capaz de reduzir em 75% a formação de fibras amiloides. É bom lembrar, novamente, que a deposição dessas fibras (amiloide) nos nervos periféricos é a origem da doença, que começa a se revelar pela perda da sensibilidade térmica e dolorosa nos membros inferiores, principalmente nos pés, daí o nome doença dos pezinhos.

Novas drogas estão sendo testadas no tratamento da enfermidade, todavia, o transplante de fígado – que permite a substituição do principal órgão produtor da proteína anômala – tem sido a forma mais usual de atenuação dos sintomas durante algum tempo. Porém, não elimina os danos já existentes nem impede o aparecimento de outros danos após o transplante.
O fígado e a febre tifóide
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)



Nesta foto verifica-se
fígado com inúmeros abscessos (setas amarelas) em decorrência da infecção aguda pela salmonella typhi (imagem obtida em sites educacionais na internet)











Nesta foto observa-se inúmeras lesões rosadas (roséolas tificas) na região periumbilical (setas amarelas). O quadro infeccioso agudo provocado pela salmonella typhi no referido paciente, foi extremamente grave (foto pertencente ao arquivo do autor deste blog).



A relação entre a bactéria causadora da febre tifóide (salmonella typhi) e a minha família não é muito amistosa. São duas, as histórias familiares de doença ocasionada pela famigerada bactéria. A primeira, ocorreu no começo dos anos quarenta. Minha tia Zizinha, irmã de minha mãe, morreu prematuramente aos 12 anos de idade em decorrência das complicações (perfuração e hemorragia intestinal) da chamada doença febre tifóide ou tifo. É bom lembrar ao estimado leitor que, no inicio dos anos quarenta, não existiam antibióticos para tratar febre tifóide ou outra qualquer doença provocada por bactérias, tais como: amidalite, sinusite, pneumonia, infecção urinária. O cloranfenicol, antibiótico indicado para o tratamento da febre tifóide só foi descoberto em 1947.

Na segunda história, o editor deste blog foi a vítima. Aos cinco anos de idade, precisamente em 1954, minha babá, de nome Sarah e nativa de Barbados (Caribe), comprou algumas ameixas secas na taberna que ficava na esquina da rua Saldanha Marinho com a Costa Azevedo e me deu para comer. Passados alguns dias, segundo informações da minha mãe quando viva, tive uma bruta febre por mais de oito dias, diarréia e fiquei com os olhos discretamente amarelos (icterícia). Minha doença foi diagnosticada e tratada como febre tifóide pelo grande médico e amigo de meu pai, o saudoso Dr. Jorge Mendes. Felizmente, em 1954 já existia o cloroafenicol importado da Alemanha, cujo nome era Cloromicetina, fabricado pela Bayer. Nunca esqueci o tal remédio, o frasco era maior do que um botijão de gás (exagero da minha parte), o líquido era grosso, gorduroso, amarelo e tinha um gosto horrível, bem pior do que o óleo de fígado de bacalhau ou da mamona. Mas, para a alegria de muitos no passado e para a tristeza de “uns míseros” no presente, fiquei curado e estou aqui escrevendo estas duas histórias familiares.

O estimado leitor deve ter estranhado o quadro clínico que apresentei quando fui acometido de febre tifóide, principalmente quando digo que os meus olhos ficaram amarelos (ictéricos). E aí vem a pergunta clássica: febre tifóide pode dar problemas no fígado (hepatite)? Claro que sim, não resta nenhuma dúvida, mas só lhe explico com maiores detalhes, daqui alguns parágrafos. Antes, preciso informá-lo sobre algumas generalidades da doença.

A febre tifóide prevalece em regiões onde o saneamento básico é inadequado e tem maior incidência (casos novos) nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. No Estado do Amazonas, as sedes dos municípios de Coari, Codajás, Manacapuru e Manaus aparecem como as de maior incidência entre os anos de 2004 e 2005. A bactéria responsável por essa doença (salmonella typhi) se transmite por via fecal-oral (fezes-boca).

A salmonella pode ser encontrada nas seguintes fontes de infecção: águas contaminadas (igarapés, poços, cacimbas, charcos), alimentos vendidos na rua por ambulantes, alimentos industrializados (maionese, sorvete, catchup, margarina, manteiga), carne crua, mariscos, no leite de vaca não esterilizado, queijo coalho (comum em nosso meio), verduras (alface, couve) e muito mais. Na carne congelada e na margarina a salmonella pode viver, de dois meses a três meses, respectivamente. Todavia, o maior problema da disseminação e transmissão da bactéria está exatamente entre os humanos portadores crônicos ou “sãos” da bactéria (sem doença). Tais portadores albergam as salmonelas na vesícula biliar e posteriormente as salmonellas são excretadas pelas fezes no meio ambiente.

É muito comum que cozinheiros(as) ou portadores(as) “sãos” da bactéria contaminem os alimentos durante o processo de preparação e manipulação através das mãos sujas de fezes infectadas pela salmonella. Viajantes de barcos de recreio que singram os rios do estado do Amazonas, freqüentemente se contaminam com a bactéria e apresentam quadro clínico de febre tifóide. Tal fato é muito comum em nossa região. Acreditamos que o problema de transmissão no barco está na água servida ou nos alimentos armazenados impropriamente, como também nos tripulantes da cozinha portadores crônicos da bactéria manipulando os alimentos.

A febre (sempre alta, até 40ºC) é a queixa mais freqüente. Outros sinais e sintomas podem cursar junto com a febre, tais como: face congesta, a língua fica saburrosa (crosta esbranquiçada que recobre a língua), enjôos, o abdome encontra-se bastante doloroso, excepcionalmente nota-se manchas rosadas (roseolas tificas) na pele da barriga (segunda figura acima) e outras localidades. A dor de cabeça é severa, o paciente pode cursar com diarréia (esverdeada com aspecto de pirão de ervilha) ou prisão de ventre. O fígado e o baço crescem. Se não tratada há tempo, a doença se complica e os pacientes podem morrer de hemorragia intestinal por perfuração intestinal, o caso da minha tia Zizinha.

Um número significante de pacientes com febre tifóide, 30 a 40% apresentam comprometimento do fígado, ocasionando um tipo de hepatite, chamada de hepatite tífica. Além dos sinais e sintomas do quadro clínico da febre tifóide, os pacientes se queixam de muita dor ao nível da localização do fígado (7ª. a 9ª. costela direita), os olhos ficam amarelos (icterícia), a urina torna-se escura (colúria) e em alguns casos, as fezes ficam brancas (acolia). Ao examinarmos os pacientes, os olhos e a pele encontram-se amarelados, o fígado (hepatomegalia) e baço (esplenomegalia) aumentados de volume. Os exames bioquímicos estão alterados, principalmente as enzimas hepáticas (TGO ou AST, TGP ou ALT), chegando a níveis de 2000 a 3000 unidades, como acontece com as hepatites agudas de origem viral.

O que diferencia clinicamente a hepatite aguda tífica da hepatite aguda viral é o prolongamento da febre na hepatite tífica por mais de cinco dias. Por exemplo, na hepatite aguda ocasionada pelo vírus A, a febre não dura mais que cinco dias. Isolada a bactéria salmonella typhi do sangue ou das fezes é indicado o tratamento com antibióticos, com cura em 100% dos pacientes. A presença da salmonella no fígado pode ocasionar múltiplos abscessos no fígado.






O fígado e as doenças ósseas

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)







O fígado é uma maquina e um laboratório que funciona ininterruptamente. Ele tem papel central importantíssimo no controle do meio interno do nosso organismo. Por isso, doenças hepáticas crônicas afetam outros órgãos e sistemas (coração, pulmão, encéfalo, rim, tecido ósseo) provocando as mais diversas doenças, como insuficiência cardíaca (coração de boi), falta de ar por comprometimento do pulmão (dispnéia), confusão mental (encefalopatia hepática crônica), insuficiência renal crônica (os rins deixam de funcionar), doenças ósseas e outras dezenas mais de doenças.

Quando o fígado está sadio ele funciona como um depósito, armazenando vitaminas do complexo B, vitamina A, vitamina D, vitamina K, vitamina E, água, glicogênio, ferro e cobre que são adquiridos através do bolo alimentar. Das vitaminas que o fígado capta dos alimentos e armazena, a vitamina D seria a responsável pela mineralização óssea.

Quando o fígado fica doente, observa-se uma deficiência na produção de vitamina D, gerando assim uma série de problemas no organismo, inclusive a não fixação do cálcio nos ossos. Lembre-se, o óleo de fígado de bacalhau (figura acima) é riquíssima em vitamina D e antigamente, a mãe gostava de botar goela adentro algumas generosas colheres do tal óleo, junto com o cálcio vitaminado (Calcigenol, Kalyamon B12). O remédio "oleo de fígado de bacalhau" existe até hoje.

Quem foi criança nos anos cinqüenta e sessenta, como eu e a minha querida prima Graça, não se esquece. Eram os remédios dados para fortalecer os ossos da criançada, apesar dos protestos mudos ocasionados pelo gosto insuportável do óleo de fígado de bacalhau.

Subir em árvores era o meu passa tempo favorito quando morei na Vila Municipal, hoje Adrianópolis (bairro da cidade de Manaus). Toda vez que a minha inventava de me dar o tal óleo, eu subia na jaqueira lá de casa para não tomar o maldito óleo. Subir na jaqueira eu sabia, mas confesso, descer sozinho, nunca. Anoitecia e quando meu pai chegava do trabalho, colocava uma escada, o primogênito descia e não tinha jeito, a desgraça vinha em forma do maldito óleo de fígado de bacalhau. Mesmo debaixo da jaqueira, minha mãe pacientemente dizia: abra a boca, tampe o nariz, feche os olhos, engula tudo e não cuspa. Com a mamona era a mesma coisa e até hoje me arrepio do gosto de cano enferrujado pós-ressaca e do cheiro indecifrável sufocante. No outro dia já tinha esquecido tudo. Apesar dos traumas oleaginosos, nunca foi necessário fazer análise, graças à psicologia espontânea dos meus pais.

Quais as doenças crônicas do fígado capazes de provocar problemas nos ossos? São várias e as principais podemos enumerar por importância. A primeira seria a cirrose biliar primária (destruição do sistema biliar contido dentro do fígado), assim caracterizada: doença crônica de caráter progressivo, de causa aparentemente desconhecida, 95% dos pacientes são do sexo feminino, a maioria das pacientes se queixam de coceira (prurido) em todo corpo, pele e olhos amarelo (icterícia) e cansaço fácil (fatiga).

Nos pacientes com cirrose biliar primária, a perda progressiva da massa óssea (osteoporose) é a doença mais freqüentemente observada, comprometendo as vértebras e os quadris, sendo na maioria dos casos assintomática. Todavia, pode manifestar-se por dor óssea difusa, colapso das vértebras e fraturas múltiplas. Em alguns casos, observa-se o amolecimento dos ossos (osteomalácia) por deficiência da vitamina D e cálcio. Ao contrário da osteomalácia, a osteoporose observada em 32% dos pacientes com cirrose biliar primária não está relacionada com a deficiência da vitamina D.

Até o presente momento, particularmente na cirrose biliar primária, não sabemos quais os fatores que levam a redução da massa óssea (osteoporose). Para evitar problemas ósseos nos pacientes com cirrose biliar, geralmente os pacientes recebem suplementos de vitamina A, D, K e cálcio.

A segunda doença seria a colangite esclerosante primária (fenômenos inflamatórios do sistema biliar, tanto dentro como fora do fígado). A bile produzida no fígado não consegue ser excretada para o intestino e volta quase toda para o sangue. Esta doença cursa cronicamente e acomete principalmente pacientes do sexo masculino. A maioria dos meus pacientes portadores desta doença pertencem ou pertenciam ao sexo masculino.O problema médico é quase parecido do que acontece com pacientes portadores de cirrose biliar e os sintomas são parecidos. O cansaço progressivo (astenia), a coceira (prurido), a pele e olhos amarelos (icterícia) são as queixas mais freqüentes. O amolecimento dos ossos (osteomalácia) por deficiência da vitamina D e cálcio é bastante observado entre esses pacientes.

Outras doenças como a hepatite crônica cursando com alto grau de icterícia, cirrose hepática e obstrução crônica das vias biliares (pedra na vesícula, tumores cancerígenos no pâncreas e na vesícula biliar) podem provocar falência do fígado. Se ocorrer tal falência, teríamos uma falta de absorção da vitamina D e problemas na fixação do cálcio nos ossos.

É bom repetir e lembrar: a deficiência das vitaminas A,D, E, K e cálcio comumente observado em pacientes com doença hepática crônica, favorece a instalação de doenças ósseas que podem levar a fraturas graves, seja por amolecimento dos ossos (osteomalácia) ou redução da massa óssea (osteoporose).
Síndrome de Gilbert

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)



Foto revela discreta icterícia (olho amarelo) em paciente jovem e portador da Síndrome de Gilbert. (Imagem pertencente ao arquivo do autor deste blog)




Frequentemente, tenho diagnosticado, em meu consultório particular, número significativo de pacientes portadores da síndrome de Gilbert, descrita em 1901 por Gilbert e Lereboullet. De origem genética (mutação no gene UGT-1A1) e de caráter familiar, essa síndrome acomete de 2% a 7% da população mundial e está relacionada a uma desordem do fígado (disfunção hepática), tendo como consequência a produção deficiente pelo órgão de uma enzima (UDP-glucuronil-transferase). O resultado dessa deficiência é o aumento no sangue de uma forma de bilirrubina – denominada bilirrubina indireta –, que leva ao quadro de pele e olhos amarelados (icterícia).

Os índices normais de bilirrubina são de 0,4 mg para a bilirrubina direta ou conjugada e de 0,8 mg para a indireta ou não conjugada. O valor total das bilirrubinas varia de acordo com o método de análise, mas considera-se o nível de 1,2 mg como o mais aceito.

Na síndrome de Gilbert, não são observados os sinais e sintomas clássicos da hepatite aguda, tais como febre, enjoo, vômito, urina escura (colúria), fezes esbranquiçadas (acolia) e aumento das transaminases. A icterícia, único sinal clínico da síndrome, pode existir desde o nascimento ou ser notada pela primeira vez na fase adulta do paciente e persistir até a velhice, tendendo a diminuir com a idade.

Fatores hormonais (em adolescentes do sexo masculino), infecções, exercícios físicos, longos intervalos de jejum e período menstrual ou pós-menstrual (caso de algumas mulheres) podem aumentar os níveis de bilirrubina não conjugada e ocasionar ou elevar o grau de icterícia. Pacientes adultos jovens e pertencentes ao sexo masculino são os mais comprometidos.
Além da icterícia, não existe nenhum outro sinal ou sintoma da síndrome de Gilbert. Todavia, alguns pacientes se queixam de fadiga, principalmente, quando os níveis de bilirrubina não conjugada no sangue ultrapassam 4,5 mg (o nível normal é de 0,8 mg). Provavelmente, a fadiga está relacionada com algum processo viral.

No exame físico, o fígado e o baço não são palpáveis. O único problema para o paciente portador da síndrome é estético, ou seja, periodicamente, os olhos e a pele se encontram ictéricos. Todos os pacientes se queixam das perguntas curiosas e maledicentes ouvidas no dia-a-dia, como:

a) Parece que a beltrana comeu uma pilha Rayovac; olha como está amarelinha, amarelinha.

b) Mano (irmão), teus olhos parecem dois bacuris (fruta regional do norte e nordeste brasileiro) maduros.

c) Mana (irmã), tu estás com aspecto da síndrome de JEC (Jesus está chamando). A paciente que contou esta história é médica e a “irmã inquisidora” é auxiliar de enfermagem).

A função do fígado é, geralmente, normal entre pacientes com a referida síndrome, ou seja, as transaminases apresentam sempre níveis sanguíneos não elevados (leia, neste blog, o artigo sobre transaminases). O único exame laboratorial alterado é o de bilirrubina não conjugada ou indireta. O fígado tem um aspecto normal, não existe qualquer tipo de lesão microscópica, embora, no exame ultrassonográfico de alguns pacientes, seja identificada infiltração gordurosa (esteatose hepática).

Afastadas outras causas de aumento sanguíneo da bilirrubina indireta (destruição das hemácias, fígado gorduroso, infecções, tumores malignos, cirrose, tireotoxicose e histórico de residência em grandes altitudes), o diagnóstico da síndrome de Gilbert não é difícil. Portanto, deve-se suspeitar da existência da doença quando um paciente apresenta elevação persistente da bilirrubina indireta sem outra causa aparente.

Com frequência, no diagnóstico da síndrome, é utilizado um teste denominado “teste de restrição calórica” ou “dieta das modelos”. O teste se dá da seguinte forma: na segunda-feira, é coletada uma amostra de sangue para dosagem das bilirrubinas; na terça-feira, o paciente ingere apenas 400 calorias em 24 horas (2 maçãs médias, uma fatia de abacaxi, uma banana prata, um copo de iogurte desnatado, uma fatia de pão integral); e, na quarta-feira, é coletada nova amostra das bilirrubinas. O que acontece? O resultado do exame da segunda-feira mostra um bilirrubina indireta ou não conjugada de 1,5 mg (a bilirrubina direta é normal). No exame de quarta-feira, 24 horas após a restrição calórica, o exame de sangue revela índices de 4,9 mg de bilirrubina indireta, ou seja, um aumento considerado, reforçando assim o diagnóstico da síndrome de Gilbert.

Por que isso ocorre? A restrição calórica aumenta consideravelmente os níveis de bilirrubina indireta em pacientes com deficiência da enzima UDP-glucuronil-transferase. No entanto, como se sabe, o jejum eleva também a concentração da bilirrubina em indivíduos normais, colocando em dúvida o valor do teste para distinguir a síndrome de Gilbert de outras doenças.

O uso de determinadas drogas, como o fenobarbital, seguido de redução dos níveis séricos de bilirrubina não conjugada, reforça também o diagnóstico.

É sempre bom lembrar que os testes devem ser aplicados por médicos especializados e nunca por curiosos ou por aqueles que seguem o ditado popular “de médico e louco todo mundo tem um pouco”.[1]

O prognóstico entre portadores da síndrome de Gilbert é excelente e, como a “doença” ocasiona apenas um problema estético (pele e olhos amarelados), não existe tratamento específico.
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[1]. No conto “O Alienista”, de Machado de Assis, é possível deliciar-se com as histórias do Dr. Simão Bacamarte (médico psiquiatra), que assim bradou em Itaguaí: “a saúde da alma é a ocupação mais digna do médico”. Triste sina a do Dr. Bacamarte, acabou se autointernando e morrendo no “Hospício Casa verde”, que ele mesmo fundou.
O fígado doente e o estado de confusão mental (encefalopatia hepática)


José Carlos Ferraz da Fonseca



Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


Quando o fígado de um paciente é atingido por uma doença aguda grave (insuficiência hepática fulminante) ou crônica (cirrose hepática), observa-se alta concentração de amônia sanguínea. Como tal fato ocorre? Normalmente, a amônia é produzida no intestino pela atividade bacteriana, transportada para o fígado através da veia porta, metabolizada nesse órgão e transformada (quebrada) em ureia. Por outro lado, na presença de insuficiência hepática ou de extensa circulação colateral (o sangue passa por fora do fígado), como a que se desenvolve na cirrose hepática, a amônia se acumula no sangue em quantidades crescentes e impregna o cérebro. Quando o fígado doente se torna incapaz de eliminar a amônia, o acúmulo dessa substância no cérebro pode causar transtornos neurológicos e psíquicos, inclusive o estado de coma ou morte.

Pacientes com fígado sadio que desenvolvem insuficiência hepática aguda ou fulminante podem apresentar quadro de encefalopatia hepática aguda. As principais causas são hepatites virais (vírus da hepatite A, B, C, D e E), febre amarela, drogas empregadas no tratamento da tuberculose, uso prolongado de anti-inflamatórios, superdosagem (mais de 10 gramas) de paracetamol (tylenol), fígado gorduroso na gravidez e infecções graves.

O estado de encefalopatia hepática crônica ou confusão mental em pacientes cirróticos pode ser desencadeado por vários fatores e os mais importantes são:

a) ingestão de carne vermelha e outras proteínas animais(leite, ovos, queijos)[1];
b) hemorragia gastrointestinal (ruptura das varizes esofágicas)[2];
c) uso de álcool;
d) infecções (urinárias, intestinais, respiratórias, do líquido ascítico);
e) uso de sedativos (diazepínicos e seus derivados);
f) uso de diuréticos (furosemida, espirolactona);
f) prisão de ventre (obstipação intestinal)[3];
g) retirada de grande quantidade de líquido ascítico da cavidade abdominal;
h) gastrites e úlceras duodenais provocadas pelo Helicobacter pylori [4] .


Sabe-se que 70% dos pacientes com cirrose hepática desenvolvem estado de confusão mental (encefalopatia hepática crônica). As funções intelectuais, de personalidade e de consciência e as funções neuromusculares sofrem alterações e limitações.

Diversos estágios da doença são observados, desde o de latência até o coma profundo. Existem vários critérios para a classificação da encefalopatia hepática. O critério de mais fácil compreensão para o leitor leigo no assunto é o de West Haven (modificado por Harold Conn em 1994).

Grau 0 (encefalopatia latente): não são observados transtornos, todavia, o médico assistente pode detectar essa fase latente durante exame psicrométrico (prova de escritura, sequência de números, seguimento de linhas, números e símbolos).

Grau 1: perturbação discreta da consciência, euforia ou ansiedade, discreto flapping ou asterixis (ao estender as mãos, o paciente apresenta tremores e as mãos parecem “bater asas”), diminuição da capacidade de atenção, redução da capacidade de cálculo. Alguns pacientes nesse estágio de encefalopatia são diagnosticados erroneamente como portadores de arteriosclerose ou doença de Alzheimer.

Grau 2: letargia ou apatia (o paciente tem baixa atividade), desorientação espacial (não sabe onde se encontra), presença de flapping ou asterixis, mudança de personalidade, comportamento inadequado, diminuição da capacidade de cálculo matemático. Há casos em que pacientes internados em clínicas psiquiátricas, apresentando o referido quadro, são tratados como portadores de doenças de origem, essencialmente, psiquiátrica e não hepática.

Grau 3: sonolência diurna e insônia noturna, confusão mental, agressividade, flapping evidente e constante, desorientação no tempo e no espaço.

Atendido em março de 2009, o caso de um paciente diagnosticado como portador do grau 3 de encefalopatia hepática ilustra o assunto. Sua esposa vinha notando um comportamento estranho do marido (59 anos, portador de cirrose hepática alcoólica). Na consulta, informou que, dois dias antes, o paciente havia urinado dentro do guarda-roupa; comido, no café-da-manhã, pequenas esferas de isopor com leite (jurando ser farinha de tapioca); vestido a calcinha vermelha da esposa; passado batom; calçando a sandália plataforma da esposa e dito que iria assistir a um show do cantor Nelson Gonçalves (falecido em 18 de abril de 1998). Para completar o quadro, o paciente ainda havia perguntado à esposa quem era ela e qual o seu nome (eram casados há mais de 30 anos). No dia da consulta, o paciente teimou em me chamar de Dr. Sócrates, jogador de futebol do passado e responsável pela “democracia corintiana”.

No fim da década de setenta, escapei por pouco de morrer nas mãos de um paciente com encefalopatia. Durante o exame de um garimpeiro no leito hospitalar, ele começou a ficar agressivo e, de repente, tirou um canivete automático do bolso e disse que iria me matar. Gritando e com os olhos esbugalhados, afirmou que eu era o mensageiro do demo e queria roubar suas pepitas de ouro. Fui salvo por outro paciente, que conseguiu tirar a arma do garimpeiro.
O paciente foi medicado e melhorou do estado de agressividade. Porém, dois dias depois, faleceu por hemorragia digestiva incontrolável. Um dos seus filhos me procurou logo após o óbito e me entregou o canivete, dizendo-me: “antes de morrer, meu pai me pediu que entregasse o canivete ao senhor. Por favor, pegue, é seu”. Quis recusá-lo, mas o prezado leitor sabe muito bem que presentes dados por mortos não devem ser rejeitados. Agradeci e peguei o canivete, o qual repousa há mais de 30 anos no fundo de uma das gavetas da minha biblioteca. De vez em quando, olho meio desconfiado para a arma branca e penso com os meus botões: “meu Deus, escapei por pouco. Obrigado por indeferir minha passagem precoce para o outro mundo”.

Grau 4: estado de coma (nenhuma reação a estímulos verbais ou dolorosos), ausência de flapping, hálito hepático (lembra o cheiro de maçã podre).

Na maioria dos casos, o quadro de encefalopatia hepática é reversível com o tratamento. A identificação e a supressão do provável agente desencadeante do quadro devem ser a primeira medida a ser explorada, bem como deve ser interrogada a família do paciente.

Para cirróticos ou familiares de pacientes com o referido problema, é muito simples controlar e prevenir o estado de confusão mental, basta seguir dois conselhos básicos. Sentado ou em pé, o paciente cirrótico deve colocar seus braços em posição reta (na linha do coração). Deve aguardar alguns segundos e, se suas mãos levantadas apresentarem movimentos semelhantes ao “bater de asas”, provavelmente, o paciente está em processo de encefalopatia hepática. O segundo conselho é que o paciente cirrótico seja questionado pela família, todos os dias e várias vezes ao dia, sobre questões comuns, por exemplo, qual é o seu nome?, em que ano você nasceu?, como é o nome do bicho de estimação da casa?, qual a marca do seu carro?, qual é o seu time de futebol? Se houver lentidão nas respostas ou afirmações como “não sei ou não me lembro”, se disser que é “flamenguista” e a família sabe que o distinto é, desde criancinha, “vascaíno de carteirinha”, deve-se ligar imediatamente para o médico assistente, pois o paciente necessita de cuidados médicos.

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[1]A ingestão exagerada de proteínas, principalmente de carne vermelha, produz excesso de substâncias aminadas, que são uma grande fonte para a produção de amônia.
[2] O sangue retido nos intestinos (cólons) incrementa a produção de substâncias nitrogenadas (amônia), que não são adequadamente clareadas, metabolizadas ou inativadas pelo fígado.
[3] A retenção prolongada das fezes no intestino favorece a proliferação bacteriana produtora de material nitrogenado (amônia e outros produtos tóxicos). Assim, o paciente cirrótico deve defecar, pelo menos, duas vezes ao dia.
[4] O helicobacter pylori é um potente produtor da enzima uréase. Essa enzima catalisa a hidrólise (reação química de quebra de uma molécula pela água) da ureia em dióxido de carbono e amônia.
O fígado nos pacientes com AIDS

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)


Um número considerável de agentes infecciosos pode comprometer o fígado, principalmente entre indivíduos infectados pelo vírus da imunodeficiência adquirida (HIV) e com AIDS (doença estabelecida). Como sabemos, o HIV é um retrovírus que ocasiona aos seus portadores um estado de defesa muito baixo (defeito da imunidade celular) contra centenas de agentes infecciosos. As doenças que geralmente são benignas entre pacientes com um bom estado de defesa (excelente imunidade celular) tornam-se gravíssimas aos pacientes com AIDS, como a toxoplasmose, tuberculose, sarampo, hepatites virais, etc.

O fígado, em tese, não é um órgão pelo que o HIV tenha alguma predileção, como ele tem por outros órgãos e células. Contudo, na fase inicial de infecção pelo HIV, as células do fígado (hepatócitos) são infectadas por este vírus e tornam-se reservatórias do vírus, perpertuando e disseminando, assim, a infecção pelo HIV. Sabemos que a presença do HIV no fígado provoca efeitos mínimos, mas, quando o estado de defesa cai, infecções oportunistas e doenças cancerígenas provocam os mais diversos sinais e sintomas de agressão ao fígado. O comprometimento do fígado entre pacientes com AIDS pode ocorrer em decorrência de infecções oportunistas, doenças cancerígenas, induzidas por fármacos utilizados no tratamento da infecção pelo HIV (anti-retrovirais).

Entre as infecções por agentes oportunistas que invadem e lesam o fígado, as mais freqüentes seriam: bacilos da tuberculose (mycobaccterium tuberculosis, mycobacterium avium intracellulare), fungos (criptococcus neoformas, histoplasma capsulatum) e vírus (citomegalovírus). Nos pacientes com AIDS que desenvolvem infecção oportunista pelos bacilos da tuberculose, a doença expressa-se comprometendo o fígado e ocasionando dor abdominal, enjôos, vômitos, febre, suores noturnos intensos, diarréia crônica, os olhos e pele ficam amarelos, a urina tem coloração escura (cor de guaraná regional), o fígado cresce. A biópsia hepática torna-se necessária para confirmar o diagnóstico. O tratamento com drogas antituberculose deve ser indicado com a maior urgência.

Revisando a literatura médica, observei que existem poucos relatos de comprometimento do fígado por fungos, mas sabemos que isto pode ocorrer quando a infecção torna-se generalizada. Se a infecção tomar este rumo, o quadro clínico pelo comprometimento do fígado revelaria: febre, crescimento do fígado provocando dor no lado direito e superior do abdome, geralmente abaixo das costelas correspondentes. O que mais chama atenção é o aparecimento da icterícia (olhos e pele de coloração amarelada); daí a suspeita do comprometimento do fígado.

Entre pacientes infectados pelo HIV e com AIDS, o citomegalovírus é incriminado como um dos principais agentes infecciosos oportunistas capaz de provocar hepatite aguda e uma doença de nome esquisito, chamada colangiopatia associada a AIDS. O quadro clínico é muito discreto, caracterizado por febre moderada, icterícia discreta (olhos amarelos), mal-estar, perda de peso, aumento do fígado e do baço.

Doenças cancerígenas como o sarcoma de Kaposi e o linfoma não-Hodkgin (tipo de tumor cancerígeno) relacionadas à AIDS podem comprometer também o fígado, além de outros órgãos. No sarcoma de Kaposi, observamos um aumento considerável do fígado e baço. Em decorrência do aumento desses órgãos, alguns pacientes queixam-se de muita dor abdominal. Por outro lado, portadores do linfoma não-Hodkgin apresentam quadro clínico mais exacerbado e caracterizado por: febre alta, emagrecimento (perda progressiva de peso), olhos amarelos, fígado aumentado de volume e dor no abdome superior (boca do estomago).

A terapia anti-retroviral altamente ativa modificou totalmente o curso da doença pelo HIV, com uma drástica diminuição da morbidade (causas de doença) e mortalidade derivada de infecções oportunistas por bactérias, vírus, fungos e outros mais agentes infecciosos. Em contrapartida, o uso destas drogas anti-retrovirais acarretaram efeitos secundários gravíssimos, entre os quais podemos incluir a toxidade hepática. Merece especial atenção este efeito secundário (toxidade hepática), porque é a principal causa de morbidade e mortalidade entre pacientes coinfectados pelos vírus da hepatite B(VHB) ou pelo vírus da hepatite C (VHC). Os efeitos dessas drogas no fígado com freqüência motiva a suspensão do tratamento contra a AIDS. Aproximadamente 33% dos pacientes infectados pelo HIV se encontram infectados também pelo VHC, prevalência que aumenta 60-90% quando a infecção foi adquirida pelo uso de drogas ilícitas injetadas no músculo ou veia. Em alguns pacientes, a infecção pelo HIV acelera o curso clínico da doença ocasionada pelo VHC e a evolução para cirrose hepática é muita rápida, menos que 10 anos.

Com o advento das novas drogas anti-retrovirais, observamos freqüentemente o aumento de casos de insuficiência hepática fulminante (hepatite fulminante). Entre pacientes com AIDS e com doença hepática crônica (cirrose hepática) pré-existente, o uso dessas drogas ocasiona morte por falência do fígado. Várias drogas são utilizadas no tratamento do HIV ou como terapêutica e profilaxia das infecções oportunistas. Entre as drogas anti-retrovirais usadas, duas delas são potencialmente tóxicas ao fígado: a zidovudina e a didanosina. As duas provocam quadro grave de hepatite aguda e o paciente pode morrer de hepatite fulminante. Drogas utilizadas no tratamento das infecções oportunistas, como rifampicina, sulafametaxazol-trimetropim, isoniazida, pirazinamida, ketoconazole, fluconazole e pentamidina, também podem provocar quadro de hepatite aguda.

Termino este artigo com um pensamento de Moliére, esperando que o próprio leitor tire as suas devidas conclusões: “Quase todos os homens morrem dos seus remédios, não das suas doenças”.
O fígado na Malária

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)



Quem sobreviveu ao ano de 2005 deve se lembrar da epidemia de malária que assolou Manaus e outros municípios do Estado do Amazonas. Segundo fonte e dados fidedignos do Sistema de Epidemiologia de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde (SIVEP-MALÁRIA), um total de 229.333 casos de malária foram notificados em todo Estado. Em Manaus, ocorreram 64.385 casos, ou seja, 28% de todos os casos no Amazonas. Grave o problema, não?


Durante a epidemia, a malária não escolheu ricos, remediados ou pobres, invasões ou condomínios de luxo, pedintes ou executivos, soldados ou coronéis, médicos ou engenheiros. Conheço dezenas de pessoas e tive vários pacientes que foram acometidos pelos agentes causadores da Malária por mais de três vezes, isto só no ano de 2005. Em 2010, diminuiu bastante o número de casos de malária, mas infelizmente a malária ainda encontra-se presente em quase todas as zonas da rica capital do Estado do Amazonas.


As perguntas mais freqüentes dos pacientes acometidos pelos dois parasitos mais comuns da “doença malária” (plasmódio vivax ou falciparum) são sempre as mesmas. Como está e como vai ficar o meu fígado depois da malária? É verdade que podemos ter malária e hepatite juntas? A malária dá hepatite?


Neste artigo tentarei explicar aos leitores que ainda não tiveram malária o que acontece quando uma pessoa é infectada por um dos agentes da doença. Os infectados pelo plasmódio vivax, ou seja, malária vivax, apresentam uma forma clínica menos agressiva do que os acometidos pelo plasmódio falciparum, sendo caracterizada por febre, dor de cabeça, calafrios, suores intensos, dor nos músculos e articulações. Alguns cursam com problemas digestivos, tais como: falta de apetite, enjôos, vômitos e diarréia. Refere-se maior inchaço do baço em relação ao do fígado. A malária vivax pode se tornar crônica. O tratamento é simples e grande parte dos pacientes cura-se. Todavia, pode ocorrer retorno da malária vivax em alguns pacientes. A primaquina, uma das drogas utilizadas no tratamento da malária vivax, pode ocasionar grande destruição das hemáceas (glóbulos vermelhos) e ocasionar o aparecimento de icterícia (coloração amarelada dos olhos e da pele). Daí os pacientes dizerem que a malária pode estar associada à hepatite (processo inflamatório no fígado).


Com relação à forma mais grave da malária, ocasionada pelo plasmódio falciparum, podemos observar manifestações clínicas mais graves do que o verificado na malária vivax. Inicialmente, os sinais e os sintomas são idênticos aos da malária vivax. Mais ainda: com o desenvolver da doença, pode ocorrer paralisação dos rins, comprometimento do cérebro, os pulmões ficam encharcados com sangue e observa-se uma anemia muito grave pela destruição das hemáceas. É comum observamos entre pacientes com malária falciparum a presença de icterícia (30 a 40%).


O aparecimento da icterícia nos pacientes acometidos na malária falciparum deve-se a dois fatores: o primeiro é a destruição das hemáceas pelo plasmódio, ocasionando produção exagerada de bilirrubinas (produto final resultante da destruição das células do sangue). A icterícia (olhos e pele amarelos) surge quando as bilirrubinas ultrapassam a cifra de 1,5 mg por 100 ml de sangue; o segundo fator é a destruição das células do fígado (necrose) em decorrência da ação direta do plasmódio falciparum.


Em suma, podemos dizer que a malária compromete o fígado da seguinte maneira: após a picada do mosquito, os parasitas da malária se alojam nas células do fígado (hepatócitos), onde se multiplicam, rompem as células do fígado e vão infectar as hemáceas. Bem, se o parasita da Malária se aloja no fígado, ele provoca hepatite? Na maioria dos casos, sim. A presença de icterícia estaria relacionada não só com a destruição das hemáceas pelo plasmódio, como também pela lesão direta do parasito da malária (plasmódio) no fígado. Por outro lado, apesar de termos uma “hepatite malárica”, verifica-se uma forma muito branda de hepatite. Tanto é assim que, em razão do comprometimento apenas transitório do fígado, a hepatite desaparece e o fígado se regenera totalmente após a cura da malária.


A “hepatite malárica” ocorre com maior freqüência entre pacientes infectados pelo plasmódio falciparum, principalmente nas formas mais graves. O maior problema da malária não é a discreta hepatite que o plasmódio pode provocar ao se alojar temporariamente no fígado e, sim, o comprometimento de outros órgãos vitais tão importantes, como os rins, o coração, os pulmões e o cérebro.

O fígado e os seus remédios protetores (hepatoprotetores)

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)






Se o povo e os laboratórios tiverem razão, são tantos os remédios que supostamente protegem o fígado que daria para escrever vários capítulos e até uma enciclopédia sobre o assunto.

Começo propriamente este artigo contando a história de um projeto de pesquisa que fui convidado para participar há alguns anos. Um determinado laboratório multinacional, com sede nos Estados Unidos, convidou vários pesquisadores latinos, inclusive americanos, para testar seu produto, um famoso e suposto “hepatoprotetor” com sabor de “fruta tropical”. O desenho do estudo era até interessante e acima de tudo ético. Mas, lendo e relendo o protocolo da pesquisa, acabei desconfiando que os componentes de tal “hepatoprotetor” não protegiam nada, muito menos o fígado. Elegantemente, recusei participar do estudo. Passaram-se alguns anos e, um dia, participando de um dos inúmeros congressos médicos sobre doenças do fígado, soube que os resultados obtidos com o tal “hepatoprotetor” iriam ser apresentados. Sem saber dos resultados, fiquei até um pouco apreensivo de assistir tal apresentação, principalmente pelo meu prejulgamento, talvez um pouco anti-hepático (desculpe o trocadilho). Final da pequena história que aqui escrevo: o tal “hepatoprotetor” não protegia o fígado e sua ação maior era a de acelerar o trânsito intestinal, ou seja, excelente para prisão de ventre. Nasceu assim um outro santo e remédio protetor, claro, das hemorróidas.

Existe alguma droga que proteja o fígado contra as agressões do dia-a-dia? No momento, não. Uma vez mortas as células do fígado, elas não se recuperam. Peço desculpas ao leitor com conhecimento de causa sobre o assunto, mas não vou citar nome comercial ou de fantasia dos chamados hepatoprotetores, pois posso ser processado e não tenho como pagar, já que o meu salário como pesquisador estadual e professor universitário federal (os dois juntos) é bem menor do que o do ascensorista ou do amigo-irmão-primo-cunhado-afilhado-motorista do congresso nacional.

Minha experiência sobre os chamados remédios protetores do fígado (hepatoprotetores) é zero, pois nunca ousei prescrever um hepatoprotetor na minha vida profissional. Mesmo assim, um número significativo de médicos, parte do povo brasileiro e quase todos os meus pacientes já prescreveram ou experimentaram os tais protetores encontrados nas prateleiras das farmácias ou drogarias. Depois de experimentarem por conta própria - ou medicados pelos amigos da sexta-feira e do sábado -, toneladas de comprimidos e flaconetes do líquido milagroso, vem a clássica pergunta: “como está o meu fígado Doutor José Carlos?. Já posso tomar uma cervejinha, comer farofa de jabá ou calabresa frita? No dia do jogo do Flamengo minha mulher vai fazer vatapá carregado nas pimentas murupi e malagueta, posso comer um montão?” Respondo sempre sem muita seriedade: o senhor continua o mesmo, mas o seu fígado não mudou nada, continua uma poça de gordura. A decepção do paciente provocada pela ineficácia do “santo remédio milagroso” é tão profunda que, algumas vezes, o paciente torna-se agnóstico.

Certo dia, uma paciente procurou-me pela primeira vez informando que tinha se consultado com um cardiologista famoso no sudeste brasileiro e ele a diagnosticou, além de hipertensa, como portadora de esteatose hepática (acumulo de gordura no fígado). No ato, o referido cardiologista prescreveu um remédio protetor do fígado, dizendo que, quando abusava da cerveja e do churrasco, tomava antes várias doses do santo remédio e era tiro certo: o fígado não sofria nada. A pergunta da minha paciente foi clássica: “Aí doutor, continuo tomando o remédio ou não?”. Alguns amigos dizem que, quando fico pressionado por algum questionamento sobre os tais protetores do fígado, me transformo totalmente e passo da sutileza de uma borboleta para a de um hipopótamo acuado numa poça de lama. Acabei por responder exatamente assim, para a surpresa e susto de minha pretensa paciente: suspenda o tal remédio e mude de cardiologista. Não sei se ela vai retornar a consulta. Espero que sim.

Finalizando este artigo, informo ao prezado leitor sem problemas no fígado que existem outras maneiras de proteger o seu fígado e as principais são:

a) evite comida gordurosa e frituras;
b) se beber (álcool), não exagere;
c) se fumar, abandone o vício, lembre-se, fumar também faz mal para o fígado;
d) evite se automedicar; esqueça alguns chás ou infusão (principalmente sacaca);
e) vacine-se contra os vírus da hepatite A e B;
f) procure saber se você é diabético ou tem algum problema na tireóide;
g) tenha sempre uma atividade física (caminhe, malhe, nade, faça hidroginástica); emagreça, se necessário;
h) faça exames periódicos.

Por outro lado, se você tem alguma doença crônica no fígado e está em tratamento, continue evitando excessos na comida e não se esqueça que você não pode beber quaisquer bebidas alcoólicas. Finalmente, faça pelo menos uma vez por ano uma revisão médica do seu fígado, pois com certeza ele vai agradecer. Lembre-se que ainda não existe até o presente momento qualquer droga que tenha alguma ação eficaz na proteção de seu fígado.

O fígado doente e o cansaço fácil (fadiga)

José Carlos Ferraz da Fonseca


Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)





O cansaço (fadiga) pode ser considerado um sintoma quando se torna motivo de queixa, como por exemplo, quando a pessoa fica cansada com pequeno esforço ou quando o descanso não traz recuperação imediata. Sabemos que o cansaço é o sintoma mais freqüente de doenças físicas e mentais. Geralmente, provém da esfera muscular, mental ou qualquer combinação delas. Quando o paciente tem comprometimento muscular, a queixa é de fraqueza e quando predomina o componente mental, a queixa é de perda de interesse e energia.

O cansaço é descrito por expressões tais como: fatigado, extenuado, pregado, letárgico, desgastado, cansado, exausto, apático, sem entusiasmo, sem interesse. Quando o sintoma “cansaço” permanece como queixa por mais de seis meses, dizemos que o paciente é portador da “Síndrome da fadiga crônica”. Sempre ouvimos por parte dos pacientes com cirrose hepática, o seguinte: Doutor, vivo com uma sensação de energia insuficiente e um forte desejo de parar com tudo, descansar e dormir.

Existem diversas causas de cansaço e os dividimos em duas categoriais. O primeiro, provocado por distúrbios psicológicos orgânicos e o segundo por distúrbios físicos.

1) Distúrbios psicológicos*:

1) associada a raiva, ansiedade e conflitos emocionais crônicos;
2) reações depressivas;
3) neuroses depressivas;
4) doenças maníacas depressivas (transtorno obsessivo compulsivo);
5) demências arterioscleróticas e senis;

*Os pacientes que se queixam de nervosismo queixam-se amiúde também de cansaço

2) Distúrbios físicos:


1) endócrinos (hipotireoidismo, insuficiência suprarenal, hiperparatireodismo, diabete melito);
2) deficiência nutritiva
3) anemia crônica (falta de ferro);
4) desidratação;
5) insuficiência renal e uremia (aumento da uréia);
6) doença cardíaca aguda e crônica;
7) doença pulmonar crônica (enfisema pulmonar);
8) uso de vários medicamentos (ingestão prolongada de tranqüilizantes e drogas sedativas);
9) uso de bebidas alcoólicas;
10) doenças de origem neuromuscular (miopatias);
11) obesidade volumosa;
12) doenças ocultas (câncer, linfomas, leucemias, tuberculose, processo infeccioso nas artérias do coração, pielonefrite crônica).
13) doenças virais
14) pressão baixa (hipotensão)

E aí vem a pergunta do leitor: fígado doente provoca cansaço ou não? Sim, o cansaço é provavelmente o sintoma mais comum e debilitante entre os pacientes com doença hepática. Tenho pacientes cirróticos que se cansam facilmente ao bocejar. Outros se cansam ao defecar, urinar ou até no ato de beber água.

Nos pacientes com doença hepática crônica, o cansaço pode ocorrer em qualquer horário do dia, contudo a queixa é mais freqüente no período vespertino. Na hepatite aguda, o cansaço é persistente por várias semanas, mesmo depois de já ter havido normalização dos exames laboratoriais.

O cansaço é exacerbado pelo excesso físico. Tenho histórias de pacientes com hepatite aguda que desmaiaram no leito, durante ou após praticarem o ato sexual. Provavelmente, pelo esforço físico e mental, os pacientes desenvolveram queda brusca de açúcar no sangue (hipoglicemia) e daí o vexame no leito conjugal. Agora, o mais importante sobre a história dos desmaios durante o ato: todos confessaram que estavam com a esposa. Sempre pedimos aos pacientes que moderem seus esforços físicos durante a doença hepática aguda.

De onde provém o “cansaço fácil” entre os pacientes com doença hepática? Sabemos que os alimentos ingeridos por nós, são ricos em carboidratos, proteínas, gorduras, vitaminas e sais minerais. No fígado normal, estas substâncias são sintetizadas e vão suprir o organismo de energia e outras coisas mais (leia neste blog artigo sobre “o que faz o fígado?”). No caso dos carboidratos, ele oferece energia ao nosso corpo em forma de glicose (açúcar no sangue). Todavia, quando o fígado está doente ou insuficiente, ele diminui ou deixa de sintetizar tais substâncias e aí uma série de problemas começam a surgir. Os mais graves seriam a falta de açúcar no sangue (hipoglicemia) e a queda dos níveis de albumina no sangue (hipoalbuminemia). Sem açúcar no organismo, os músculos começam a ter problemas. Florescem e agravam os sintomas, os pacientes se queixam de dor e de lassidão muscular, tornando-os essencialmente cansados.

Nas hepatites agudas e crônicas de causa viral, diversos estudos sugerem que o consumo exagerado de glicose no fígado por estes agentes infecciosos, ocasionaria hipoglicemia e conseqüentemente, fadiga muscular. Diuréticos utilizados no tratamento da cirrose hepática podem provocar espoliação do sódio e potássio, ocasionando também queixa de cansaço fácil. Outras drogas utilizadas no tratamento das formas crônicas de hepatite, como a ribavirina, o interferon convencional ou peguilado, são incriminadas como responsáveis pela fadiga e até depressão. Pacientes portadores de hepatite crônica C virgens ao tratamento, queixam-se freqüentemente de cansaço.

Finalizando este artigo, é sempre bom lembrar o seguinte: se o cansaço (fadiga) bater, entrar sem autorização e não sair da sua vida por mais de 10 dias, procure um clínico o mais rápido possível, você pode ter algum problema no seu fígado ou em outro órgão.
O fígado nos pacientes diabéticos: um “doce segredo” a ser revelado

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)



Estima-se que aproximadamente 175 milhões de pessoas no mundo tenham uma das duas formas clínicas de diabetes: diabetes tipo 1 (diabetes insulino- dependente ou juvenil) e diabetes tipo 2. Dos 175 milhões de diabéticos no mundo, 90% são portadores de diabetes tipo 2. No Brasil, calcula-se que existam 4,5 milhões de portadores da doença “diabetes”. Através de um programa continuado de educação médica, grande parte dos diabéticos conhece os efeitos nocivos que porventura essa doença possa ocasionar quando não controlada, tais como: emagrecimento, perda da visão, dificuldades no processo de cicatrização, furunculose, doenças renais graves (insuficiência renal crônica), infecções genitais e urinárias freqüentes na mulher e, finalmente, doenças vasculares ocasionando derrame cerebral, infarto do miocárdio, formigamento nos pés, amputação de membros por gangrena, disfunção erétil, etc.

Existe algum comprometimento do fígado em pacientes diabéticos? Segundo o que a maioria dos pacientes crê, não! É factível acreditar neles, já que para os “doces pacientes” tudo se encontra às mil sobremesas, o fígado só deve estar um pouquinho doce, branquinho como açúcar refinado e ponto final!

O que escrevo acima me fez lembrar de minha mãe. Era uma diabética aos extremos (glicose no sangue menor que 250mg era uma festa lá em casa). Sempre teve uma personalidade fortíssima, todavia com uma “doçura química” inquestionável. No dia-a-dia, comia de tudo. Doceira de mão cheia, não dispensava uma sobremesa, tanto no almoço como no jantar. Mas na hora do cafezinho dizia sempre: “sou diabética e, por favor, só tomo café com adoçante”.

Faço a partir deste artigo um pacto com os pacientes diabéticos ou familiares. Revelo aqui parte do subtítulo deste artigo, o “doce segredo”, e os diabéticos devem prometer procurar o seu endocrinologista para se tratarem.

Durante minhas aulas e palestras, expresso-me sempre dizendo que o fígado é o poço ou receptáculo de nosso organismo, uma verdadeira cisterna. Tudo o que é de ruim passa por ele (álcool, cocaína, antiinflamatórios, remédios para emagrecer, chás caseiros, plantas medicinais de origem brasileiras e chinesas, vermes, fungos, bactérias, vírus, produtos finais de alimentos gordurosos, etc.). Mesmo assim, nosso “camarada fígado” raramente manifesta-se e não dói. Porém, um dia, a casa cai, mas aí é tarde e a recuperação se torna difícil.

Sabemos que a origem da doença diabetes tipo 2 está relacionada com um quadro de resistência a insulina em 90% dos casos. Obesidade é o mais importante fator de risco para diabetes e as duas condições clínicas estão sempre lado a lado. O que acontece no fígado em conseqüência do aumento da glicose ? Muita coisa que a maioria dos pacientes não sabem. Cientificamente, observa-se que parte dos pacientes adultos com diabetes tipo 2 tem um aumento significativo de doenças hepáticas, incluindo cirrose hepática, quando comparados com a população geral não-diabética. Um percentual significativo dos pacientes com cirrose hepática tem resistência à insulina e 20-40% tem diabetes tipo 2.

Falando tanto de cirrose hepática, o que viria a ser esta doença que tanto assusta? Sem rodeios, a cirrose é o processo final de reparação do fígado (substituição de tecido normal por tecido fibroso e sem função) de uma lesão mantida e contínua aos longos dos anos por um agente, que pode ser infeccioso, medicamentoso, químico (álcool), metabólico ou imunológico (o próprio organismo tentando destruir o fígado).

Como começa o comprometimento do fígado em um paciente diabético? Inicialmente, o fígado começa a acumular gordura (esteatose hepática), principalmente em decorrência do aumento da produção de triglicerídeo hepático (20-30% dos diabéticos apresentam na ultra-sonografia acúmulo de gordura hepática). Particularmente, observa-se que 100% dos pacientes com obesidade mórbida e diabetes apresentam esteatose hepática. A deposição contínua de gordura no fígado poderia ocasionar um processo inflamatório agudo (hepatite) e levar a uma doença chamada de esteato-hepatite aguda (hepatite aguda por deposição de gordura). A esteato-hepatite acomete 50% dos adultos diabéticos obesos situados na faixa etária entre 35 e 60 anos. O sexo feminino é o mais comprometido (60 a 80%) e mulheres diabéticas obesas com idade superior a 50 anos teriam um maior risco de desenvolver tal doença.

A referida doença, na maioria dos casos, é assintomática, ou seja, uma grande parte dos pacientes não sente qualquer problema. Por outro lado, alguns pacientes queixam-se de um leve desconforto (sensação de peso) no lado direito do abdome, geralmente abaixo das costelas. Ao exame clínico, grande parte dos pacientes apresenta fígado crescido (hepatomegalia), sendo este considerado o dado clínico mais freqüente observado pelo médico. Nos exames de sangue, um número significativo dos pacientes apresenta provas de função hepática discretamente alteradas, como as transaminases e aumento das taxas de gordura no sangue, principalmente em decorrência do aumento dos triglicerídeos.

Se não tratada, a esteato-hepatite aguda torna-se crônica e um percentual bastante significativo dos diabéticos desenvolverão uma cirrose hepática ao longo do tempo, nunca menos que 20-30 anos. Pacientes diabéticos têm um risco aumentado em 7 (sete) vezes de apresentar endurecimento do tecido do fígado (fibrose). Diversos estudos científicos incriminam a doença diabetes mellitus II como fator de risco para o desenvolvimento de câncer de fígado. Estudos bem atuais têm provido evidências de que as hepatites virais pelos vírus das hepatites B e C, o uso abusivo do álcool e diabetes tipo 2 interagem sinergicamente desenvolvendo o câncer de fígado.
O fígado e o caminho das pedras (litíase biliar)
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)
Na figura ao lado, podemos verificar uma vesícula biliar contendo em seu interior duas dezenas de pedras provavelmente constituídas de colesterol (setas).


“O fígado e o caminho das pedras”. Um tema médico com título de roteiro de filme ou de livro. Qual seria o porquê deste título tão enigmático? Nada mais, nada menos para chamar a atenção do leitor às possíveis conseqüências ao organismo ou ao fígado da presença de pedras (cálculos biliares) na sua mais famosa companheira e vizinha: a vesícula biliar. Neste artigo, chamo a atenção também para a presença de pedras dentro do fígado e o que poderia acontecer de ruim com este órgão.

As pedras na vesícula biliar (cálculos biliares) se formam quando o líquido armazenado no interior daquela sofre um processo de endurecimento, transformando-se em material sólido. O líquido, chamado bile, é utilizado pelo nosso organismo na digestão das gorduras. A bile é produzida pelo fígado e armazenada na vesícula biliar. Existem dois tipos de cálculos biliares: o primeiro, constituído de colesterol; o segundo, formado por pigmentos. Os cálculos constituídos de colesterol são os mais freqüentes (80%). Usualmente tem uma coloração verde-amarelada e podem ser do tamanho de um grão de areia, de um grão de arroz, do tamanho de um ovo de codorna ou de galinha. A formação dos cálculos biliares contendo colesterol dar-se-ia pelo alto percentual de colesterol contido na bile. Por outro lado, os cálculos constituídos de pigmentos (bilirrubina -produto da bile) são bem menores e podem ter coloração cinzenta-esverdeada, ocre ou negra. A causa da formação dos cálculos pigmentada é de origem incerta, todavia tais cálculos se encontram com maior freqüência em pacientes com cirrose hepática ou portadores de doenças inflamatórias crônicas da vesícula biliar.

Os principais fatores na formação dos cálculos biliares, especialmente os constituídos de colesterol, seriam:

1)obesidade, maior risco na formação de cálculos, especialmente na mulher;

2)excesso de estrógeno (hormônio feminino) durante a gravidez ou estrógeno reposto por terapêutica;

3)sexo feminino (mulheres entre 20-60 anos de idade são duas vezes mais propensas a desenvolver cálculos do que os homens);

4)idade (pessoas maiores que 60 anos tem maior probabilidade de ter cálculos do que pessoas jovens);

5)origem comum de raça (etnia), alta freqüência entre indígenas americanos, mexicanos e população da Amazônia brasileira nativa ou não (predisposição genética?);

6)diabetes, doença sempre acompanhada de altas taxas de gorduras (triglicérides) no sangue e fator de risco para produção de cálculos de colesterol;

7)perda rápida de peso (doenças, regimes, cirurgias redutoras do estômago).Quando um indivíduo perde peso rapidamente, o organismo tenta compensar tal perda, metabolizando rapidamente as gorduras, e isto faz com que o fígado produza taxas extras de colesterol na bile, conseqüentemente levando à formação de cálculos.

Geralmente, as pessoas portadoras de cálculos biliares não apresentam queixas clínicas (cálculos silenciosos ou litíase biliar assintomática), porém a qualquer momento pode ocorrer o que nós chamamos de “queixas de ataque”, caracterizadas por: dor do tipo cólica (cólica biliar), de média intensidade que aumenta progressivamente com o tempo (pode durar 30 minutos ou várias horas) e localiza-se no lado direito e superior do abdome, geralmente abaixo das costelas correspondente (localização da vesícula biliar); dor no ombro direito; enjôos e vômitos.

Após alimentação com altos teores de gordura, tais como feijoada, vaca atolada, muqueca, rabada, arabu (bate-se açúcar com ovo cru de tracajá ou tartaruga), tartarugada, farofa de jabá, lingüiça frita, picanha com três dedos de capa de gordura, é comum o imortal “rei do colesterol” queixar-se à noite, depois do almoço familiar dominical, de gases incontroláveis e inconvenientes, boca amarga e com gosto de cabo de guarda-chuva (cabo de guarda-chuva tem gosto?), cólica, sensação que a barriga vai explodir (distensão abdominal). No dia seguinte, logo pela manhã o paciente refere intolerância a alimentos gordurosos. Chamamos todo este quadro clínico de litíase biliar sintomática. Com certeza, no próximo domingo já foi tudo esquecido e aí começa tudo de novo, logo no café da manhã do brasileiro: banana frita, pão de queijo (pão de maior concentração de gordura no cardápio brasileiro), queijo frito na chapa, pão com ovo frito, macaxeira banhada na manteiga, bolo de milho, canjica, mungunzá e tapioca carregada na manteiga. Mas para compensar o “pecado da gula”, o nosso dileto paciente exige e toma café preto com adoçante artificial. Até hoje, ainda não descobri porque os comilões adoram café adoçado artificialmente e refrigerante light. Seria somente uma questão religiosa?

Um dia a presença crônica dessas pedras na vesícula biliar começam a trazer complicações. A vesícula biliar inflama (colecistite aguda) e o paciente apresenta dor constante na boca do estômago e debaixo das costelas direitas, com reflexo para o ombro direito. Existe o relato de calafrios, febre alta, enjôos, vômitos, os olhos e a pele ficam amarelos (icterícia). As fezes ficam brancas ou semelhantes à massa de vidraceiro (acolia) e a urina cor de guaraná regional (colúria). A dor, sempre presente no processo de inflamação aguda da vesícula biliar, é o único sintoma que a diferencia de uma hepatite aguda por vírus ou droga.

A ultra-sonografia é o procedimento de diagnóstico médico de eleição com uma sensibilidade e especificidade de 95%. Após o diagnóstico, chegou o momento do médico agir. Inicialmente, trata-se o processo infeccioso com antibióticos. Depois de esfriado o processo infeccioso (desaparecimento da febre e dos outros sinais e sintomas), o paciente será encaminhado ao cirurgião para extração deste saco de pedras (vesícula biliar), seja por cirurgia convencional ou por vídeo-laparoscopia. A presença de cálculos na vesícula biliar com mais de dois centímetros de tamanho associado a infecções freqüentes deste órgão (colecistite crônica) seria responsável pelo aparecimento do câncer de vesícula biliar em 90% dos casos. Lembre-se: você pode viver muito bem sem a sua vesícula biliar doente.

As pedras na vesícula biliar podem comprometer o fígado? Claro que sim, daí o tema do artigo. Quando a vesícula biliar repleta de pedras apresenta processo inflamatório, existe uma tendência de obstruir a passagem de biles para o intestino. A bile não excretada reflui para o fígado, torna-se tóxica e vai ocasionar hepatite aguda. As bactérias responsáveis pela inflamação da vesícula biliar podem ascender para o fígado e daí podem provocar um quadro infeccioso agudo, geralmente grave, tendendo a formação de hepatite aguda infecciosa (bacteriana) e posteriormente de abscessos no fígado. Se não tratado, o paciente poderá morrer com infecção generalizada.

Raramente observamos a presença de cálculos dentro do fígado. Mas, quando isto ocorre, os sintomas e sinais são semelhantes à presença de cálculos na vesícula biliar. Existe uma doença rara chamada “Doença de Caroli”, que se caracteriza principalmente pela presença de pedras dentro do fígado e episódios freqüentes de infecção por bactérias (hepatite aguda trans-infecciosa).

Obs. A figura acima foi obtida através de material educacional (livre utilização), pertencente a Asociación Española para del Estúdio el Hígado (CD Fondo de Imagem em Hepatologia, 2005) e patrocinado pelo laboratório internacional Schering-Plugh S.A.
O fígado e as transaminases (aminotransferases)


José Carlos Ferraz da Fonseca


Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


O fígado é um dos órgãos do corpo humano que mais sofre agressões no dia-a-dia, seja por agentes internos ou externos. Os agentes internos se originam do próprio organismo e os mais importantes são autoanticorpos (que tentam destruir o fígado), proteínas tóxicas, colesterol, triglicérides etc. Dos agressores externos, os mais importantes são vírus, bactérias, parasitas, fungos, medicamentos, ervas (leia, neste blog, três artigos sobre drogas e ervas), álcool, cocaína e outras coisinhas mais.

Bem, se o fígado é agredido, como ele responde ao dano? Clinicamente, aumentando de volume (hepatomegalia). Contudo, o melhor indicador do processo inicial de lesão do fígado são os resultados encontrados nas chamadas provas laboratoriais (bioquímicas) de avaliação do órgão.
No arsenal médico, há alguns testes bioquímicos sanguíneos que podem ser utilizados para medir o nível de agressão ao fígado, porém os mais sensíveis e os de maior representatividade são a avaliação de duas enzimas produzidas em parte pelo fígado ou por outros órgãos. A primeira é a transaminase glutâmica oxalacética (TGO), hoje chamada de aspartato aminotransferase (AST), e a segunda é a transaminase glutâmica-pirúvica (TGP), atualmente designada de alanino aminotransferase (ALT).

Os níveis no soro das aminotransferases são significativamente maiores nos homens do que nas mulheres. É notório que a idade também é fator determinante na variação dos valores das aminotransferases. Até os 15 anos de idade, a atividade da AST é discretamente maior do que a da ALT; já entre maiores de 15 anos, a atividade da ALT tende a ser maior do que a da ALT. Por outro lado, acima dos 60 anos, os níveis da ALT e da AST se tornam semelhantes em relação à atividade no soro. Indivíduos de origem africana (sem doença hepática) apresentam taxas maiores das aminotransferases, se comparadas aos níveis encontrados entre brancos.

Quando se deve considerar que o aumento da ALT e da AST no soro representa doença hepática? Discute-se muito no meio médico científico tal fato. Contudo, considero e sigo este procedimento: se o paciente apresentar, principalmente, nível de ALT duas vezes maior do que o valor normal, deve ser investigado. Como exemplo pode-se citar o que acontece com portadores do vírus da hepatite C. Número significativo desses pacientes apresenta as aminotransferases pouco alteradas e pode ser portador de hepatite crônica bastante avançada.

A enzima AST (aspartato aminotransferase) é encontrada em ordem decrescente no fígado, músculos do coração e esqueléticos, rim, cérebro, pâncreas, pulmão, células brancas (leucócitos) e vermelhas (eritrócitos). Torna-se patente que a AST não é uma enzima específica do fígado. Quando órgãos são lesados (necrose do tecido), há liberação da AST para o soro, sendo ela quantificada através de exames bioquímicos. Os valores normais da AST são diferentes conforme o método de avaliação utilizado, todavia, os valores mais aceitos são abaixo de 32 unidades internacionais por litro (32 UI/l).

A AST é aumentada no soro e maior do que a ALT nas seguintes condições:
1. infarto agudo do miocárdio (AST de origem cardíaca);
2. lesão muscular aguda (por grandes traumas ou em portadores de rabdomiólise );
3. portadores de cirrose hepática avançada de qualquer causa;
4. determinadas doenças infecciosas (leptospirose);
5. doenças hepáticas agudas e crônicas alcoólicas;
6. doenças de origem biliar obstrutiva (pedra na vesícula, por exemplo);
7. doenças da tireoide;
8. doença celíaca (doença do intestino delgado por intolerância permanente a glúten);
9. falso aumento das transaminases (cetoacidose diabética, uso de eritromicina).

A enzima ALT (alanino aminotransferase) apresenta maior concentração no fígado, sendo a sua avaliação a mais útil na investigação das doenças do órgão. A enzima é liberada pelo fígado após a destruição do tecido hepático e encontrada rapidamente no sangue. Sabe-se que, tanto em pessoas sadias quanto em hepatopatas, o nível da ALT é maior durante o dia (eleva-se no período da tarde) do que à noite.

Os valores normais da ALT também variam conforme o método de análise utilizado, todavia, os valores mais aceitos são abaixo de 28 UI/l. O risco relativo de morte entre pacientes do sexo masculino e portadores de doença hepática crônica (ALT elevada) é bem maior do que nos pacientes do sexo feminino.

Há aumento da ALT no soro e elevação em relação à AST nas seguintes condições:
1) hepatite aguda (viral, principalmente, com níveis que podem chegar até a 14.000 UI/l);
2) hepatites crônicas (na hepatite crônica delta, se observa um discreto aumento da AST em comparação à ALT);
3) esteatose hepática associada a obesidade;
4) intoxicações agudas por drogas.

Drogas e ervas:e o seu fígado, como fica? (I)
José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)







O fígado é o órgão central da metabolização de todas as drogas e a principal vítima das doenças ocasionadas por tais substâncias. Determinadas drogas podem ocasionar as mais diversas reações agudas no nosso fígado, inclusive levando à falência do fígado e, conseqüentemente, à morte por necrose (destruição de tecido), citando como exemplo a ingestão oral de altas doses suicidas do acetominofem (mais de 10 gramas em uma só tomada). Vale salientar que algumas dessas drogas podem também causar lesão hepática crônica, ou seja, dano hepático cuja duração é maior que 2-3 meses.

Como se dá o comprometimento do fígado pelo uso de drogas (remédios, ervas, etc)? Sabemos que existem drogas e ervas tóxicas que atuam agredindo diretamente o fígado e outras que agem em decorrência da reação ou da vulnerabilidade do próprio indivíduo afetado (idiossincrasia). Uma informação complementar se faz necessária sobre este assunto. Por favor, caro leitor, não se assuste, nem todas as pessoas que ingerem tais drogas terão obrigatoriamente uma hepatite aguda (processo inflamatório) ou doença hepática crônica (cirrose hepática).

O problema maior do dano ao fígado está na ação da droga, na dosagem do medicamento (dose elevada), no tempo de tratamento, na combinação com uma ou mais drogas (tratamento da AIDS, tuberculose), doenças hepáticas pré-existentes (esteatose hepática, esteato-hepatite não alcoólica, hepatite crônica viral ou alcoólica, cirrose hepática) e na sensibilidade do seu fígado a tais medicações.

Quais seriam estas drogas ou ervas que agem diretamente no fígado provocando os mais graves danos em alguns pacientes? São várias, desde as produzidas em laboratórios farmacêuticos ou aquelas produzidas em panelas e nas chamas do fogão de nossa casa ou do seu vizinho (chá de ervas ou garrafadas). Lembrei agora de uma garrafada milagrosa feita pela mulher de um dos meus pacientes. O mesmo era portador de cirrose hepática pelo vírus da hepatite C. Na tal garrafada havia de tudo: droga, folha ou raiz, antiinflamatório líquido, mel de cana e abelha, gotas de extrato-hepático, cidreira, sacaca, boldo do Chile, raiz do açaí. Só que para melhorar o gosto do sagrado remédio para o fígado, ela colocava uma colherinha de chá de um determinado biotônico, famoso energético. Ele adorava o tal preparo da esposa amada e queria tomar garrafada toda hora, mas, coitado, nunca melhorou, piorava cada vez mais e acabou indo mais cedo ao encontro do santo protetor dos apreciadores das garrafadas.

Voltamos às drogas que agem e agridem diretamente o fígado. São dezenas e, cada vez, aparecem com maior freqüência no mercado farmacêutico. Entre as substâncias capazes de produzir lesão aguda no fígado e a sua principal indicação terapêutica teríamos:

1)acetominofem ou paracetamol (antitérmico);
2)albendazol (tratamento das verminoses);
3)alopurinol (tratamento da gota e aumento do acido úrico);
4)amiodarona (tratamento e prevenção das arritmias cardíacas);
5)amoxicilina-ácido clavulínico (antibacterianos);
6)ampicilina (antibacteriano);
7)aspirina (tratamento da febre, dores articulares);
8)azitromicina (antibacteriano);
9)cefalexina (antibacteriano);
10)captopril (anti-hipertensivo);
11)cimetidina (tratamento da gastrite ou úlcera gástrica);
12)clorotiazida (diurético);
13)contraceptivos em geral;
14)diazepan (antidepressivo);
15)eritromicina (antibacteriano muito usado em pediatria);
16)estrógeno (hormônio);
17)fenilbutasona (antiinflamatório);
18)ibuprofeno (antiinflamatório);
19)indomecetina (antiinflamatório);
20)isoflurano (anestésico usado em cirurgias);
21)isoniazida (uma das drogas utilizadas no tratamento da tuberculose);
22)ketoconanazol (utilizado no tratamento da candidíase vaginal);
23)sinvastatina (anticolesterol);

24)metildopa (anti-hipertensivo);
25) metrotexato (droga utilizada em várias doenças, inclusive artrite)
26)penicilina (antibacteriano);
27)ranitidina (tratamento da gastrite ou úlcera gástrica);
28)sulfadiazina (antibacteriano);
29) tetraciclina (deve ser evitada durante a gestação)
30)verapamil (anti-hipertensivo)
31)zidovudina (antiviral empregado em pacientes com AIDS).

Duas drogas acima citadas, acetominofem e isoniazida, quando ingeridas com bebida alcoólica aumentam a agressão ao fígado e o paciente pode morrer por falência do fígado.

Existem outras drogas no arsenal terapêutico médico capaz de lesar o fígado? Sim, e as acima citadas seriam as de maior importância para o conhecimento do leitor. No próximo artigo "drogas e ervas: e o seu fígado, como fica? (II)" daremos continuidade ao tema.




Drogas e Ervas: e o seu fígado, como fica? (II)
Foto da planta sacaca ou cajuçara (cróton cajucara Benth).

O que acontece do “ponto de vista clínico” com os pacientes que desenvolvem uma hepatite aguda após ingestão das drogas referidas no artigo anterior publicado neste blog(Drogas e Ervas: e o seu fígado, como fica? (I). Geralmente, as mesmas manifestações clínicas de uma hepatite aguda viral, ou seja, o fígado aumenta de tamanho, os olhos ficam amarelos (icterícia), a urina fica escura (cor de guaraná), ocorrendo em alguns casos febre e urticária (erupção da pele acompanhada de coceira e ardor intenso). Queixas digestivas como vômitos e enjôos são relatadas freqüentemente pelos pacientes. Quanto aos exames laboratoriais, observa-se aumento das taxas sangüíneas das aminotransferases ou transaminases (2 a 8 vezes os seus valores normais). O aumento das aminotransferases no sangue reflete processo de destruição das células do fígado (hepatócitos). Um outro exame sangüíneo que também está alterado pela ação das drogas no fígado seria as bilirrubinas. O aumento da bilirrubina no sangue seria responsável pela coloração amarelada do globo ocular e da pele. A conduta médica nestes casos está explícita na suspensão da droga que se supõe seja a responsável pela doença aguda hepática. Quando ocorrer hepatite fulminante, os pacientes devem ser internados, já que a mortalidade é muito grande entre estes.

O uso prolongado de diversas drogas pode ocasionar doença hepática crônica, evoluindo na maioria dos casos para cirrose hepática. Tais drogas e suas indicações seriam: acetominofem (antitérmico); alfa metildopa (anti-hipertensivo ainda usado no Brasil); aspirina (antitérmico); isoniazida (uma das drogas utilizadas no tratamento da tuberculose); nitrofurantoína (antibacteriano usado freqüentemente em infecções urinárias crônicas); oxifenisatina (laxante ainda usado em alguns países). Estes pacientes apresentam olhos e pele amarelados (icterícia), fígado endurecido e baço aumentado de volume.

Passamos agora a descrever sobre o uso das principais ervas utilizadas pela população com finalidades terapêuticas e seus efeitos deletérios ao fígado. No interior do Brasil (zona rural)e na periferia das grandes cidades, o uso de chás e ungüentos de origem vegetal tornou-se em muitas localidades a única fonte de medicamentos, principalmente nos locais mais isolados e distantes ou carentes de assistência médica. Na medicina popular, temos um arsenal muito grande de produtos derivados de plantas capazes de lesar o fígado pelo seu alto poder tóxico, são as chamadas ervas hepatotóxicas.

Na literatura médica, é freqüente o relato de inúmeros casos de óbito por hepatite fulminante em decorrência da ingestão de drogas de origem botânica. Recentemente tive a oportunidade de ler um artigo científico publicado no “European Journal of Gastroenterolgy & Hepatology”, (2005). O referido artigo relata a ocorrência de falência hepática aguda (hepatite fulminante) em uma paciente francesa após a ingestão do extrato de chá verde (Camellia sinensis). A referida paciente desenvolveu um quadro grave de insuficiência hepática, quadro este que foi irreversível, levando-a a ser submetida ao transplante hepático urgente.

Na literatura brasileira, diversos artigos publicados revelam casos fatais de hepatite pelo uso do chá ou cápsulas da não menos famosa sacaca ou cajuçara (cróton cajucara Benth), figura acima postada. A sacaca é utilizada pela população do norte brasileiro para tratar diarréia, diabetes, para baixar o colesterol, redutora do peso, distúrbios do fígado e do rim. Diz o povo, “se a sacaca é amarga, faz bem para o fígado”. Triste engano: deixe as folhas da sacaca em paz. Sobre a sacaca, o que posso informar de bom? Sabe-se apenas que testes preliminares revelam que o extrato da sacaca é ótimo para matar até 100% das larvas do transmissor da Malária contidas em criadouros.

Vivemos pressionados pela mídia e pelos manipuladores de ervas medicinais para usarmos tais produtos, partindo do pressuposto: “o que é natural é bom e não faz mal”. Grande parte dos meus pacientes com doença hepática crônica, antes de se consultarem pela primeira vez, relatam que se automedicam com preparos naturais compostos de ervas medicinais. Na Alemanha, gasta-se anualmente mais de 350 milhões de reais com um produto composto de erva (extrato seco de cardus mariannus - silimarina) para tratar as doenças crônicas do fígado. Está comprovado cientificamente que tal droga não tem qualquer efeito na proteção ou cura de qualquer doença do fígado. Tive pacientes que tiveram que ser hidratados com soro endovenoso, em decorrência de um quadro diarréico copioso após a ingestão de tal medicação.

No próximo artigo, daremos continuidade ao tema Drogas e Ervas: e o seu fígado, como fica? (III), com ênfase as ervas medicinais que poderiam ocasionar reações adversas ao fígado.


Drogas e Ervas: e o seu fígado, como fica? (III)José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)
Foto da planta sacaca ou cajuçara (cróton cajucara Benth).

O que acontece do “ponto de vista clínico” com os pacientes que desenvolvem uma hepatite aguda após ingestão das drogas referidas no artigo anterior publicado neste blog(Drogas e Ervas: e o seu fígado, como fica? (I). Geralmente, as mesmas manifestações clínicas de uma hepatite aguda viral, ou seja, o fígado aumenta de tamanho, os olhos ficam amarelos (icterícia), a urina fica escura (cor de guaraná), ocorrendo em alguns casos febre e urticária (erupção da pele acompanhada de coceira e ardor intenso). Queixas digestivas como vômitos e enjôos são relatadas freqüentemente pelos pacientes. Quanto aos exames laboratoriais, observa-se aumento das taxas sangüíneas das aminotransferases ou transaminases (2 a 8 vezes os seus valores normais). O aumento das aminotransferases no sangue reflete processo de destruição das células do fígado (hepatócitos). Um outro exame sangüíneo que também está alterado pela ação das drogas no fígado seria as bilirrubinas. O aumento da bilirrubina no sangue seria responsável pela coloração amarelada do globo ocular e da pele. A conduta médica nestes casos está explícita na suspensão da droga que se supõe seja a responsável pela doença aguda hepática. Quando ocorrer hepatite fulminante, os pacientes devem ser internados, já que a mortalidade é muito grande entre estes.

O uso prolongado de diversas drogas pode ocasionar doença hepática crônica, evoluindo na maioria dos casos para cirrose hepática. Tais drogas e suas indicações seriam: acetominofem (antitérmico); alfa metildopa (anti-hipertensivo ainda usado no Brasil); aspirina (antitérmico); isoniazida (uma das drogas utilizadas no tratamento da tuberculose); nitrofurantoína (antibacteriano usado freqüentemente em infecções urinárias crônicas); oxifenisatina (laxante ainda usado em alguns países). Estes pacientes apresentam olhos e pele amarelados (icterícia), fígado endurecido e baço aumentado de volume.

Passamos agora a descrever sobre o uso das principais ervas utilizadas pela população com finalidades terapêuticas e seus efeitos deletérios ao fígado. No interior do Brasil (zona rural)e na periferia das grandes cidades, o uso de chás e ungüentos de origem vegetal tornou-se em muitas localidades a única fonte de medicamentos, principalmente nos locais mais isolados e distantes ou carentes de assistência médica. Na medicina popular, temos um arsenal muito grande de produtos derivados de plantas capazes de lesar o fígado pelo seu alto poder tóxico, são as chamadas ervas hepatotóxicas.

Na literatura médica, é freqüente o relato de inúmeros casos de óbito por hepatite fulminante em decorrência da ingestão de drogas de origem botânica. Recentemente tive a oportunidade de ler um artigo científico publicado no “European Journal of Gastroenterolgy & Hepatology”, (2005). O referido artigo relata a ocorrência de falência hepática aguda (hepatite fulminante) em uma paciente francesa após a ingestão do extrato de chá verde (Camellia sinensis). A referida paciente desenvolveu um quadro grave de insuficiência hepática, quadro este que foi irreversível, levando-a a ser submetida ao transplante hepático urgente.

Na literatura brasileira, diversos artigos publicados revelam casos fatais de hepatite pelo uso do chá ou cápsulas da não menos famosa sacaca ou cajuçara (cróton cajucara Benth), figura acima postada. A sacaca é utilizada pela população do norte brasileiro para tratar diarréia, diabetes, para baixar o colesterol, redutora do peso, distúrbios do fígado e do rim. Diz o povo, “se a sacaca é amarga, faz bem para o fígado”. Triste engano: deixe as folhas da sacaca em paz. Sobre a sacaca, o que posso informar de bom? Sabe-se apenas que testes preliminares revelam que o extrato da sacaca é ótimo para matar até 100% das larvas do transmissor da Malária contidas em criadouros.

Vivemos pressionados pela mídia e pelos manipuladores de ervas medicinais para usarmos tais produtos, partindo do pressuposto: “o que é natural é bom e não faz mal”. Grande parte dos meus pacientes com doença hepática crônica, antes de se consultarem pela primeira vez, relatam que se automedicam com preparos naturais compostos de ervas medicinais. Na Alemanha, gasta-se anualmente mais de 350 milhões de reais com um produto composto de erva (extrato seco de cardus mariannus - silimarina) para tratar as doenças crônicas do fígado. Está comprovado cientificamente que tal droga não tem qualquer efeito na proteção ou cura de qualquer doença do fígado. Tive pacientes que tiveram que ser hidratados com soro endovenoso, em decorrência de um quadro diarréico copioso após a ingestão de tal medicação.

No próximo artigo, daremos continuidade ao tema Drogas e Ervas: e o seu fígado, como fica? (III), com ênfase as ervas medicinais que poderiam ocasionar reações adversas ao fígado.

Drogas e Ervas: e o seu fígado, como fica? (IV)


Foto do Confrei. Imagem obtida no website www.iac.sp.gov.br/PAM/Especies/Confrei.htm


Quais seriam tais ervas medicinais que poderiam ocasionar tantas reações adversas ao fígado e a outros órgãos? Nas bancas originais dos mercados municipais do Brasil, seja em Manaus, Belém, Salvador e outros mais, podemos verificar dezenas de feixes de folhas, caroços, sementes, cascas, raiz e cipó de produtos naturais. Imagine tudo aquilo, imaginou? Pois é, caro leitor, tudo é bem menor nos mercados municipais brasileiros quando comparado com uma feira que tive a oportunidade de visitar em Cingapura durante o mês de setembro de 2004. A feira de produtos naturais estendia-se por dois quarteirões, tinha centenas de bancas com plantas, raízes, cascas, garrafadas. Encontrei até testículo de cachorro, rabo de tigre e morcego secos. Imaginei-me até procurando por um tipo de raiz que tivesse alguma ação contra a traição e ingratidão de supostos amigos institucionais. Claro, era só imaginação, tal erva não existe. Somos nós próprios que a semeamos e, portanto, devemos colhê-la.

As ervas asiáticas são famosas no mundo inteiro e responsáveis em grande parte pelas hepatites agudas e crônicas de origem medicamentosa nos Estados Unidos da América e na Europa. Determinadas ervas chinesas são tão agressivas ao fígado que se aplicadas na pele para fins de tratamento dermatológico (dermatites) são capazes de provocar hepatite fulminante e, conseqüentemente, óbito. Uma das composições de uso tópico dermatológico que provocam quadros graves de hepatite contém 14 tipos de ervas diferentes. Os autores que descreveram tal problema sugerem que o efeito agressivo ao fígado ocorra em razão da combinação da erva paeonia suffructicosa com as outras ervas. Dois produtos naturais de origem chinesa e conhecidas como “ervas do rei” são responsáveis nos Estados Unidos da América por formas graves de hepatite aguda, inclusive hepatite crônica. A primeira, Jin Bu Huan (Lyppocodium serratum) é usada como droga sedativa e a segunda, Ma-Huang (Ephedra sp.), estaria indicada como droga redutora de peso. As duas são muito utilizadas pelas mulheres americanas em busca da leveza espiritual e material.

Nos Estados Unidos e no Brasil, existe uma paranóia pelo emagrecimento rápido. Na minha vida, eu nunca vi tantos produtos naturais capazes de operar milagres na silhueta dos obesos. Tive uma paciente de 28 anos de idade que, após um tratamento a base de 10 ervas, emagreceu 25 quilos. Calma, prezado leitor, o emagrecimento não foi provocado pelas “10 ervas” e sim pela indicação médica da mesma fechar a boca para alimentos nocivos em decorrência de uma bruta hepatite aguda provocada pela droga. Devo estar deixando a impressão ao leitor de que ao escrever sobre produtos naturais para o uso terapêutico sou extremamente contra o uso de tais produtos botânicos. Muito pelo contrário, o que você acha? Vejam, drogas importantíssimas utilizadas no arsenal terapêutico médico são de origem vegetal, como o quinino (tratamento da malária) e a digoxina (tratamento da insuficiência cardíaca). O problema maior é que continuamos achando que tudo que provém da natureza não faz mal.

Volto a perguntar! Quais seriam as principais ervas medicinais que poderiam ocasionar tantas reações adversas ao fígado e a outros órgãos? São centenas, mas as poucas que aqui passo a descrever seriam aquelas comumente usadas pela população brasileira, tais como:

1.- arnica (utilizada em forma de tintura nos processos de traumas e quando ingerida provoca hepatite aguda grave);

2.- carvalinha ou camédrio (indicada como laxante, vermífugo, diurético e sua ingestão está associada com hepatite aguda, fulminante e crônica);

3.- casca sagrada (indicada como laxativo e também provoca hepatite aguda);

4.- confrei (seu extrato é utilizado como cicatrizante, mas se ingerido ocasiona hepatite aguda e fulminante);

5.- sacaca (de acordo com o povo cura todos os males, todavia causa hepatite aguda, fulminante, crônica e até cirrose);

6.- erva de São João (tratamento da ansiedade e ocasiona hepatite aguda e fulminante);

7.- sena (droga abortiva, causando hepatite aguda muito discreta);

8- sálvia (serve para tratar gota, constipação intestinal, dispepsia, indisposição, astenia, diabetes, úlceras varicosas e, quando usada em pacientes cirróticos, pode provocar hemorragia).

Finalizando a série destes três artigos sobre drogas e ervas, revelo uma das combinações de ervas mais indicadas pelos apreciadores da medicina natural para combater os males do fígado: Espinheira Santa + Sacaca + Carqueja amargosa + Boldo do Chile + Camomila + Dente de leão e Alfazema. Alguém ainda teria coragem de tomar uma lapada do chá feito com as sete ervas? Se sim, estou a sua inteira disposição para uma consulta médica sem qualquer ônus num futuro bem próximo.

Diversas publicações cientificas internacionais começam a revelar ao mundo médico, os problemas relacionados com a ingestão do produto "Herbalife". Quadros graves de hepatite, inclusive com óbitos, estão sendo descritos em vários lugares do mundo. Ouça sempre o seu
médico antes de tomar qualquer chá medicinal.