Câncer primário de fígado: sua importância, causas e consequências
José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)

Imagem revelando câncer primário do fígado ou tumor maligno primário do fígado (setas amarelas). A foto foi obtida na internet através do site educacional pertencente à Universidade de Cornell (http://edcenter.med.cornell.edu), EUA.


O fígado pode ser acometido por um processo cancerígeno através de dois modos. No primeiro, o câncer desenvolve-se no próprio fígado e denomina-se “câncer primário de fígado” ou "carcinoma hepatocelular primário". Quanto ao segundo modo, o aparecimento do câncer no fígado ocorre por metástases (migração por via sangüínea ou linfática de células cancerosas provenientes de uma lesão inicial em outro órgão) e é chamado “câncer secundário de fígado”. Neste artigo, iremos descrever somente o câncer primário de fígado.

O câncer primário de fígado ou tumor maligno primário do fígado é a quinta causa mais comum de câncer no mundo e a terceira causa mais comum de mortalidade por câncer em geral. Globalmente, cerca de 560 mil pessoas desenvolvem câncer de fígado a cada ano e estima-se que um número equivalente a 550 mil indivíduos morra anualmente em conseqüência desse processo cancerígeno.

O desenvolvimento do câncer de fígado primário não tem predileção por raças ou etnias. Todavia, a incidência desse câncer é bem maior no sexo masculino do que a observada no sexo feminino. O homem teria maior probabilidade de desenvolver este tipo de câncer hepático em decorrência dos seguintes fatores: susceptibilidade genética (predisposição a determinadas doenças), maior taxa de infecção pelos vírus das hepatites B e C (vírus sabidamente cancerígenos), consomem mais álcool (agente cancerígeno), fumam mais cigarros (agentes cancerígenos), existe um maior depósito de ferro (substância cancerígena) no fígado, alta massa corporal e elevadas taxas de hormônios andrógenos, principalmente a testosterona.

O câncer primário de fígado é o único tipo de câncer que ocorre largamente no contexto dos fatores de risco conhecidos. Sabe-se, ainda, que o referido processo cancerígeno ocorre em 80% dos casos entre pacientes com doença hepática crônica e cirrose hepática. As maiores causas de cirrose em pacientes com tal tipo de câncer são: infecção crônica pelo vírus da hepatite B (VHB) e C (VHC), doença hepática alcoólica e esteato-hepatite não alcoólica.

Quais seriam os principais fatores de risco para o desenvolvimento do câncer primário de fígado? São vários e os mais importantes seriam:

1) a infecção crônica pelo VHB. É a causa mais freqüente em todo mundo. Observa-se entre portadores crônicos VHB a probabilidade 100 vezes maior de desenvolverem câncer primário de fígado comparado com aqueles não portadores do VHB. Na Amazônia brasileira a infecção pelo VHB é a principal causa deste tipo de câncer;

2) infecção crônica pelo VHC é um outro fator de risco para o desenvolvimento de câncer primário de fígado. No Japão, 80-90% dos casos deste tipo de câncer ocorrem devido à infecção crônica pelo VHC. Pacientes infectados conjuntamente pelos vírus da imunodeficiência (HIV) e pelo VHC teriam um maior risco de desenvolver cirrose e câncer primário de fígado comparados com pacientes portadores somente do HIV;

3) a ingestão de álcool, 50-70 gramas por dia e por mais de cinco anos, é um grande fator de risco para o aparecimento de uma cirrose hepática e, conseqüentemente, câncer primário de fígado;

4) aflatoxinas: toxinas liberadas por um fungo (Aspergillus species) com alto poder cancerígeno ao fígado. Esse fungo encontra-se em sacos contendo farinha de mandioca, milho e amendoim. O desenvolvimento desse fungo deve-se ao mau armazenamento dos sacos, principalmente em ambientes úmidos e de pouca circulação de ar. Verifica-se na China e África a maior incidência de câncer primário de fígado por toxinas liberadas por este tipo de fungo.

Outros fatores de risco menos comuns para doenças hepáticas crônica e câncer de fígado primário seriam: esteato-hepatite não-alcoólica, obesidade, diabetes mellitus, hábito de fumar tabaco entre portadores de cirrose hepática pelo VHB ou VHC e finalmente pelo uso de contraceptivo oral.

Como já se relatou, mais de 80% dos pacientes que apresentam câncer primário de fígado são portadores de cirrose hepática. A piora abrupta de um paciente com cirrose hepática pode ser a primeira manifestação de um tumor primário do fígado associado. Do ponto de vista clínico, podemos observar entre os portadores de câncer primário do fígado o que se segue: febre contínua; a perda de peso é progressiva (até 20 quilos em média de dois meses); os olhos e a pele ficam cada vez mais amarelo-esverdeados; ocorre um aumento do volume abdominal; o fígado aumenta de volume e uma grande maioria dos pacientes queixa-se de dor em peso, ou cansada debaixo da última costela direita (o próprio paciente sente e palpa uma massa dolorosa, no caso o fígado). Se diagnosticado precocemente e o tumor for menor que cinco centímetros, o transplante hepático é o método terapêutico mais indicado.

Finalmente, recomendamos que todo paciente portador de cirrose hepática deve a cada 4-6 meses realizar uma ultra-sonografia abdominal e testar no sangue a alfa-fetoproteína (proteína que aumenta no câncer de fígado).










Boca amarga: um sintoma proveniente do fígado?

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)


Nas eras remotas da medicina e principalmente durante os séculos XVIII e XIX, a língua, um dos componentes da cavidade oral (boca), era considerada o “barômetro da saúde”, ou seja, o exame clínico começava pela boca. Neste período, o clínico era obrigado a se dirigir ao paciente com a clássica pergunta: “por favor, mostre-me a língua”. Se não fosse feita tal pergunta, a competência do médico era questionada pelos familiares e pacientes. Durante séculos, as observações do estado da língua do paciente tornaram-se tão importante quanto tomar as pulsações do paciente.

Por muito tempo, o sintoma “boca amarga” foi considerado como doença ocasionada por maus fluídos e estava associada aos demônios que habitavam as entranhas dos indivíduos. Na história do cotidiano médico, uma das queixas mais frequentes que o clínico ouvia e ainda ouve até hoje é o relato de boca amarga. Uns dizem que o gosto na boca fica igual a “água de lavar espingarda”, outros relatam o gosto de “cabo de guarda-chuva” e outros chegam a dizer que a boca é tão amarga que lembra “fel de galinha” ou sal amargo de Epsom (laxativo a base de sulfato de magnésio).

Desde que o homem surgiu no Éden, o fígado é considerado o réu da questão e incriminado por todos como o causador do problema. Portanto, seria a boca amarga um problema exclusivo de origem hepática? Sabemos que não e que diversas outras causas são atribuídas a tal queixa, como podemos observar na tabela abaixo:

Principais causas de boca amarga por ordem de importância
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a) Processos digestivos (gastrite, doenças de refluxo gastresofágico);
b) Doenças do fígado com a presença de icterícia (olhos amarelos, pele, mucosas);
c) Depressão (pode ser o primeiro sintoma da depressão);
d) Carência de vitaminas do complexo B;
e) Alergias alimentares;
f) Intoxicação por chumbo (sabor metálico);
g) Intoxicação por mercúrio e ferro;
h) Intoxicação por selênio;
i) Hábito de fumar e mascar tabaco;
k) Abscessos dentários;
l) Inflamações das glândulas salivares;
m) Dentes cariados;
n) Doenças da gengiva;
o) Uso de drogas (antiinflamatórios, tranqüilizantes, antibióticos, antialérgicos, anticonvulsivantes, antiparasitários).
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Como podemos observar, as causas mais importantes da queixa de boca amarga relatada pelo paciente seriam as de origem do aparelho digestivo (esôfago, estômago e fígado). Como explicar tal fenômeno clínico? Não é difícil: basta lembrar que qualquer problema no estômago ocasionado por doenças (refluxo gastresofágico, hérnia hiatal, gastrite, ulcera) ou pela ingestão de produtos que irritam a mucosa gástrica (pimenta, frutas cítricas, frituras, chocolate, cigarro, alho, café, álcool, bebidas gasosas, drogas) vai produzir em abundância um ácido, que é conhecido como “ácido clorídrico”. Se o esôfago não funciona bem, ou seja, não se fecha completamente quando a comida ou líquido chega ao estômago, o ácido com resíduos alimentares reflui para o esôfago e vai provocar, além de boca amarga, azia, língua saburrosa, salivação excessiva, eructações (arrotos) freqüentes e outros problemas mais.

Com relação ao fígado, sabe-se que este órgão capta, conjuga e excreta uma substância chamada de bilirrubina (produto final resultante da destruição das células do sangue). Qualquer processo inflamatório dentro do fígado (hepatite viral, uso de drogas hepatotóxicas) ou fora do fígado obstruindo a passagem da bilirrubina (pedra na vesícula ou no colédoco, câncer de pâncreas ou de vesícula biliar, obstrução por lombriga etc.) faz com que bilirrubina não seja excretada com a bile (fluido produzido pelo fígado e armazenado na vesícula biliar) para o intestino e retorne para o sangue.

O fígado, dependendo da quantidade de alimentos que você come por dia, chega a produzir até 1 litro por dia deste fluido (extremamente amargo), que é armazenado na vesícula biliar. Quando a bile é impedida de chegar ao intestino, pode alcançar o estômago por refluxo, via duodeno (primeira porção do intestino delgado), ser absorvida e daí provocar irritação gástrica. A bile contida no estômago estimularia a produção de ácido clorídrico, podendo provocar náuseas, vômitos biliosos e boca amarga. Alimentos gordurosos também podem estimular a produção de biles pelo fígado e ocasionar boca amarga.
O fígado, as meninas e os gaviões

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)



Nesta foto nota-se olhos amarelos (icterícia discreta) em jovem portadora de hepatite crônica auto-imune (imagem pertencente ao editor deste blog)









Esta foto revela paciente do sexo masculino com alto grau de icterícia (pele e olhos amarelos). O mesmo foi diagnosticado como provável portador de hepatite aguda auto-imune. (foto pertencente ao arquivo do editor deste blog)




O filme brasileiro que concorreu ao “Oscar” de melhor filme estrangeiro em 2006 tinha um título sui generis e interessante: “cinema, aspirinas e urubus”. Quem assistiu, diz que é excelente, apesar do título exótico . Escrevi este artigo médico com o título de “O fígado, as meninas e os gaviões” e explico as razões: tenho diagnosticado freqüentemente em pacientes do sexo feminino, crianças, adolescentes ou jovens adultas, uma doença inflamatória contínua do fígado que na maioria das vezes evolui para cirrose hepática, sem causa conhecida. Sabe-se que a inflamação crônica e destruição do fígado nas meninas dar-se-ia por uma reação anormal do sistema (imunológico) de defesa da própria paciente. A referida doença é conhecida no meio médico como “hepatite auto-imune” e é rara. Recentemente, um paciente do sexo masculino (54 anos) com tal enfermidade crônica do fígado foi diagnosticado em meu consultório, ou seja, dos 29 casos de hepatite auto-imune diagnosticados entre 2006 e março de 2010, apenas quatro pertenciam ao sexo masculino.

Com relação ao título deste artigo, acredito que eu tenha explicado sucintamente a relação entre a doença inflamatória contínua do fígado e as meninas. Todavia, o leitor deve estar questionando o seguinte: e os gaviões, o que isso tem haver com o fígado e as meninas? Nada, por enquanto, como os “urubus” do filme brasileiro. Como precisava de um título, também único no seu gênero, simplesmente lembrei que os pais de antigamente chamavam de gaviões, os meninos que ficavam brechando ou abicorando (falava-se assim) suas filhas para namorar, daí, o complemento do título deste artigo.

Afinal de contas, como se caracteriza esta doença? Conforme relatado anteriormente, a hepatite auto-imune acomete preferencialmente as mulheres adolescentes e jovens (3 anos-25 anos). Todavia, pode aparecer numa idade mais avançada (40-70 anos). A destruição do fígado é progressiva e pode evoluir para cirrose hepática na ausência de tratamento específico. Bactérias e vírus (da hepatite A, B e C, herpes tipo 1, sarampo, da mononucleose infecciosa ou doença do beijo) poderiam estar implicados como agentes desencadeantes da hepatite auto-imune, ou seja, as bactérias e os vírus funcionariam como gatilho no aparecimento da doença. Seria a hepatite auto-imune uma doença de caráter hereditário? Vários estudos sugerem que sim, mas ainda não podemos afirmar com segurança se isto é verdadeiro.

Um número significativo de pacientes cursa com a inflamação crônica do fígado sem apresentar qualquer sinal ou sintoma de comprometimento hepático. Entretanto, a doença pode se exteriorizar como se fosse hepatite aguda, caracterizada por: febre, dor muscular (mialgia), enjôos (náuseas), vômitos, pele e olhos amarelos (icterícia), urina escura (colúria), falta de apetite (anorexia) e emagrecimento. Apesar de não ser freqüente, formas graves e fulminantes de hepatite podem ocorrer, inclusive com óbito.

Além dos sinais e sintomas acima descritos, é freqüentemente observado entre algumas pacientes adolescentes sinais de doença das glândulas (endócrina), como se segue: falta de menstruação (amenorréia); presença exagerada de pelos no rosto (hirsutismo); espinhas (acne); estrias, principalmente nas costas e coxas. Quando sua filha adolescente cheia de espinha e estrias, atrasar a menstruação por mais de 3 a 6 meses, não pense logo que tal atraso menstrual seja culpa de algum gavião. Por favor, procure um especialista, sua andorinha pode estar doente.

Infelizmente, se a doença inflamatória contínua do fígado ocorre numa fase mais precoce de vida (3 anos e 10 anos), esta pode passar despercebida (sem qualquer sintoma ou sinal) e se não devidamente diagnosticada e tratada, é comum que quando chegue na fase adulta, a paciente apresente sinais clínicos de cirrotização do fígado, tais como: falta de menstruação (amenorréia), barriga d’água (ascite), sangramento da gengiva (gengivorragia) e do nariz (epistaxe), hemorragia digestiva por rupturas de varizes esofágicas. Esta é a fase mais avançada e grave da doença e só um transplante hepático pode resolver o problema.

O diagnóstico da hepatite auto-imune é muito difícil para o especialista, já que não existe um exame específico que defina o diagnóstico da hepatite auto-imune. Utilizamos um sistema de pontuação de resultados de vários exames de laboratório para sistematizar o diagnóstico da enfermidade. A biópsia do fígado é o exame mais importante na elucidação da doença.

Se não tratada, a paciente vai evoluir inexoravelmente para cirrose hepática. O diagnóstico tem que ser precoce para que possamos iniciar o tratamento com drogas que diminuam o componente inflamatório do fígado e impeçam assim, o aparecimento da cirrose hepática. Tenho pacientes que foram diagnosticadas na fase inicial da doença (sem cirrose) há mais de 15 anos, continuam tomando as medicações e estão muito bem e, até agora não desenvolveram cirrose.
O dia-a-dia dos pacientes com cirrose hepática

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)





Dando continuidade aos artigos publicados neste blog sobre cirrose hepática, podemos dizer que, se o paciente cirrótico encontrar-se em fase bem avançada da doença e, mesmo assim, tiver o prazer de comer e de ingerir exageradamente alimentos constituídos de proteína animal (carne vermelha, ovo, manteiga, queijo amarelo, leite animal), existe a possibilidade do mesmo entrar em estado de confusão mental.

Elementos que fazem parte das proteínas animais, quando ingeridos e degradados no intestino, produzem uma substância chamada amônia, substância esta que vai impregnar o cérebro e é responsável pela estado de confusão. Este estado é conhecido no meio médico como encefalopatia hepática. O quadro tende a iniciar-se com a presença de sonolência diurna e insônia noturna, mudança de comportamento e conduta inadequada, alterações na escrita que impossibilita assinar-se o próprio nome.

A maioria dos pacientes perde a noção de espaço (não sabem onde estão e são capazes de urinar nas cestas de lixo, pia ou no guarda-roupa) e fica totalmente desorientada no tempo (esquecem tudo o que se relaciona com dia, semana, ano, números, etc.). Alguns pacientes perdem totalmente a memória e são incapazes de lembrarem seu nome. Pacientes pacíficos se convertem em indivíduos eufóricos, irritadíssimos, inquietos, apresentam conduta infantil e a agressividade fica muito patente nestes pacientes (alguns são erroneamente internados em clínicas psiquiátricas). Outros, pelo contrário, tornam-se muito passivos e são incapazes de reagir a qualquer estímulo, seja verbal ou físico. É comum que familiares telefonem e digam: “Doutor, o papai está de novo com aquela bobeira ”.

Sempre indicamos aos pacientes com cirrose hepática dieta baseada em proteínas vegetais e damos ênfase a produtos essencialmente brasileiros e amazônicos tais como: castanha regional, tucumã, pupunha, abricó, abacate, manga, ingá e outros mais. Por outro lado, é injustificável a restrição total de gorduras na dieta do cirrótico. O tabu de que as gorduras aumentam o trabalho do fígado e, assim, o seu desgaste funcional carece totalmente de fundamento científico. Sabe-se de antemão que 75% dos pacientes cirróticos são desnutridos em decorrência da própria doença (são anoréticos) e em conseqüência das inúmeras restrições dietéticas impostas por leigos, familiares, compadres e vizinhos. È sempre aquela mesma história não pode comer isso ou aquilo, pois tudo faz mal. A gordura sem excesso é uma fonte energética do organismo. Nesses pacientes indico como fonte energética vegetal (constituída de gordura monosaturada e não faz mal) os seguintes produtos: leite da castanha regional ou do Pará, tucumã, pupunha e leite de coco. Por outro lado, contra-indicamos qualquer tipo de gordura animal (bacon, pele de galinha ou de pato, gordura da picanha, carne seca). Peixe gordo pode comer, não faz mal, menos frito, certo?

Depois da carne vermelha e de gordura animal, o ato de proibir o consumo exagerado de sal aos pacientes cirróticos é um dos maiores problemas que o médico encontra na clinica diária. Do “ponto de vista” não-médico, qualquer comida sem sal, principalmente o peixe (sempre indicado ao paciente com cirrose), é intragável, sem gosto, apesar de sabermos o mal que o consumo exagerado do sal faz, principalmente para os que têm o fígado sadio e mais de quarenta anos de idade. É bom lembrar ao prezado leitor que a maioria dos índios ao se “socializar” ou como chamo, “salsocializar”, tornam-se hipertensos por comerem sal. O consumo de mais de três gramas (duas pitadas generosas) de sal por dia pode representar ao cirrótico em fase avançada da doença o que se segue: aumento do inchaço (edema) nas pernas (principalmente nos tornozelos), a barriga cresce e fica cheia de liquido (ascite) e os pulmões podem ficar comprometidos pela presença de líquidos (derrame pleural).

A piora do quadro clinico de um paciente com cirrose pode ser provocada por uma dieta errada ou por infecções bacterianas, fato muito comum observado entre esses pacientes. Um número significativo de pacientes cirróticos desenvolve a popular “vermelha” (erisipela) nos membros inferiores ocasionado por infecções bacterianas em decorrência da má circulação venosa, que é provocada pelo mau funcionamento do fígado. É mais um dos cuidados que os familiares dos pacientes com cirrose têm que ter. Qualquer sinal de “vermelha” nas pernas do seu familiar, leve-o ao médico imediatamente, pois aquele pode desenvolver confusão mental e entrar em coma. Levar o paciente para a rezadeira não vai adiantar, as bactérias são agnósticas e o que cura mesmo é o antibiótico prescrito pelo médico.

Se você, caro leitor, tem na família ou conhece alguém, por exemplo, com cirrose hepática, mantenha-se vigilante na dieta prescrita pelo médico e fique atento para detectar os sinais e sintomas. O diagnóstico precoce no ambiente familiar pode ajudar, e muito, o seu familiar, conhecido ou amigo. Por outro lado, caro leitor, se você tiver cirrose hepática já diagnosticada, siga corretamente o que o seu médico recomenda, pois alguém poderá contar sua história quando você entrar em crise.
O álcool e o fígado: o início, o meio e o fim da história.

José Carlos Ferraz da Fonseca.
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)

Baco: o Deus do vinho (imagem sob domínio público na internet)


O ser humano, desde os primórdios de sua vida, tem uma relação carnal e amorosa com o álcool (etanol), substância química componente de todas as bebidas alcoólicas. Na história bíblica da criação do ser humano, se o fruto do pecado fosse uma uva, o chamado fruto da vida, a história de Adão e Eva poderia ser contada ou recontada de outra maneira. Claro, sabemos que a maçã produz uma pequena quantidade de álcool depois da fermentação, mas não nos percentuais da uva, 8 a 20% de álcool por litro. Suspeita-se que toda a história do binômio homem e álcool tenha começado no período paleolítico (idade da pedra lascada). Foi aí que começou o “pomo da discórdia”.

É sabido que todo alcoolizado sempre tem razão e, o que é pior, depois de se encontrarem sóbrios juram que não lembram de nada. Provavelmente, o início da relação homem e álcool fora de forma acidental. Como isto aconteceu? Nossos antepassados, ao armazenarem o mel de abelhas em recipientes rústicos, perceberiam um processo de fermentação e, ao ingerir o produto fermentado, agora contendo álcool, o humano racional teria provado, gostado e não esquecido jamais. A cerveja, uma das paixões do povo brasileiro, já era fabricada no período neolítico (idade da pedra polida).

Painéis e artefatos arqueológicos revelam que 30 mil anos antes de Cristo o ser humano já fazia da ingestão do álcool o seu cotidiano prazeroso. Diversas obras artísticas e literárias, inclusive algumas e famosas tragédias gregas, faziam referências aos efeitos até então benéficos das bebidas alcoólicas. No antigo mundo egípcio, romano e grego, falsos profetas e profetisas ou sacerdotes e sacerdotisas, após bebericar altas doses de álcool nos templos das orações, comunicavam-se com os Deuses e a partir daí os destinos dos reis, imperadores, senadores e dos povos em geral eram traçados sobre o efeito das alucinações promovidas pelo álcool.

Cientificamente, sabemos que a ingestão de altas doses do álcool teria uma ação alucinógena. Há mais de 30 anos, no começo de minha vida profissional, tinha um paciente com mais de 65 anos e alcoólatra. No dia da consulta, bem cedo, já chegava totalmente embriagado e ao entrar no meu consultório ele tinha o prazer de dizer: “Bom dia Dr. Getúlio Vargas, cadê o Gregório?” Infelizmente, logo o álcool levou-o ao encontro de seu ídolo maior.

Dos grandes profetas, Maomé foi o mais enfático na proibição do álcool aos seus seguidores. Os muçulmanos vêem no álcool uma falta gravíssima desde que o profeta Maomé recebeu uma mensagem de Alá dizendo que bebidas alcoólicas eram "obra de Satã”. Tal proibição, mesmo de cunho religioso, reflete-se na área médica. Cientificamente, sabe-se que uma grande parte dos povos da península árabe seria incapaz de produzir no fígado uma determinada enzima, e tal problema genético resultaria em uma ação dez vezes mais agressiva do álcool ao fígado. Por tal deficiência, ocorreria uma evolução desfavorável para um quadro de cirrose hepática alcoólica em menos de 08 anos. Esta proibição e o “efeito-causa” deveriam servir como exemplo para o bom relacionamento da religião com a medicina.

Em 1543 o abuso da ingestão de bebidas alcoólicas foi associado com as enfermidades do fígado (Vesalius, Matthew Baillie). No ano de 1590, a presença de água na barriga dos pacientes (ascite), também chamada popularmente de hidropisia, foi relacionada pela primeira vez à cirrose hepática, principalmente entre alcoólatras.

No século XVII o estado de confusão mental e coma hepático (sinais de falência hepática) foram também correlacionados à cirrose hepática alcoólica. Na segunda metade do século XIX, precisamente na França, o alcoolismo começa a ser conceituado como doença, e não apenas vício. Em tal país, e em pleno século XIX, bebia-se muito. Cada vez mais aumentava o número de tabernas por habitantes e nas ruas parisienses era freqüente o número de pessoas alcoolizadas. Qualquer coincidência com o Brasil de hoje é pura especulação do autor.

Se o leitor deste artigo, ou alguém bem próximo, beber diariamente 80 gramas de álcool (uma dose de cachaça ou vodca e mais duas latas de cerveja), por mais de 5 a 12 anos, provavelmente, terá grandes possibilidades, desde que seja susceptível, de desenvolver uma cirrose hepática alcoólica.

O alcoolismo é considerado como uma das principais causas de cirrose hepática (fígado endurecido como pedra) no mundo. Todavia, apenas 8 a 10% dos alcoólatras a desenvolvem. Em muitos alcoólatras, contudo, a cirrose hepática nunca ocorre, mesmo após décadas de ingestão de álcool excessiva. Não existe uma explicação coerente e científica para esta aparente resistência à doença. No Brasil, o maior coeficiente de morte específica por cirrose hepática alcoólica concentra-se nas regiões Sul e Sudeste, regiões conhecidas pelo alto consumo de álcool, principalmente o vinho. A mortalidade por cirrose hepática alcoólica no homem é maior do que na mulher e tal fato deve-se ao maior consumo de álcool entre aqueles, apesar de que as mulheres são mais suscetíveis a desenvolverem cirrose hepática alcoólica do que o homem.

O álcool em pequenas quantidades é estimulante do apetite, tranqüilizante e sedativo, libera o bebedor de suas inibições e restrições de conduta social, estimula a habilidade e o talento. Entretanto, a ingestão de álcool de maneira crônica e excessiva produz diversas doenças físicas e mentais. Entre os órgãos que mais sofrem com o uso abusivo do consumo alcoólico está o fígado. Isto é patente e notório, não se discute. O álcool produz uma substância denominada de acetaldeído, que é muito tóxica ao fígado, provocando danos hepáticos gravíssimos e na maioria das vezes irreversíveis. Fatores genéticos, imunológicos e ambientais independentes podem determinar o desenvolvimento de doença hepática alcoólica. Contudo, o dano hepático causado pelo álcool está estritamente relacionado à quantidade, freqüência e duração do tempo de consumo de álcool. A ingestão diária por um período longo de mais de 80 gramas de álcool (uma dose de cachaça ou vodca e mais duas latas de cerveja) constitui-se um alto de risco de doença hepática.

O que acontece com o fígado daqueles que exageram no consumo contínuo do álcool? A história clínica passa por quatro fases distintas. A primeira fase caracteriza-se pela presença de deposição de gordura no fígado (esteatose hepática); a segunda, pela fase de inflamação aguda do fígado (hepatite aguda alcoólica); a terceira, pela fibrose do fígado (formação de tecido fibroso); e, finalmente, a quarta, que é a fase de cirrose alcoólica (fígado endurecido). Com pouca freqüência, alguns pacientes poderiam desenvolver processo tumoral maligno de fígado (câncer de fígado), mas uma grande parte destes morrem antes de complicações da cirrose, como hemorragia digestiva, infecções generalizadas e falência hepática.

A fase de deposição de gordura no fígado (esteatose hepática) raramente apresenta algum sinal ou sintoma de doença. Alguns pacientes queixam-se apenas de uma dor em peso ou cansada debaixo da última costela direita e o fígado torna-se grande e palpável em alguns pacientes. Observa-se na ultra-sonografia uma infiltração de gordura no fígado. A função bioquímica do fígado está normal, ou seja, os níveis bioquímicos das aminotransferases (transaminases) encontram-se normais. A esteatose hepática é a primeira lesão a ocorrer após a ingestão alcoólica e pode aparecer precocemente no fígado após o consumo de grandes quantidades de álcool.

A segunda fase da doença (hepatite aguda alcoólica) tem sintomas e sinais clínicos idênticos aos de uma hepatite aguda causada por um vírus. O paciente queixa-se de cansaço fácil, vômitos e náuseas (enjôos), falta de apetite, os olhos ficam amarelos e a urina cor de guaraná regional. O fígado pode crescer e os exames de laboratórios revelam o aumento das aminotransferases (transaminases). Por estar doente ou com medo, o paciente perde a vontade ou pára de beber, geralmente fica curado. Porém, se o paciente continuar bebendo, poderá evoluir para as fases mais graves da doença alcoólica, que são a da substituição das células normais do fígado por tecido fibroso (sem função no fígado) e finalmente cirrose hepática. Na fase de fibrose do fígado não há sintomas específicos, geralmente é assintomática. Por outro lado, 8 a 10 anos após a primeira fase clínica da doença (esteatose hepática), o alcoólatra começa a apresentar sinais e sintomas crônicos da doença (fase de cirrose).

Classicamente esta fase final de doença caracteriza-se por: febre discreta; olhos amarelos, lesões na pele semelhantes a aranhas; perda de peso; diminuição e flacidez da massa muscular; sangramentos (gengivas, nariz, pele, estômago); perda da libido (perda no interesse em manter relações sexuais); queda de pêlos; aumento doloroso dos peitos masculinos; ausência de menstruação, esterilidade e seios inchados extremamente dolorosos na mulher. A barriga começa a acumular líquido (ascite) e as pernas apresentam-se inchadas. Nesta fase, o alcoólatra pode apresentar sonolência, euforia, agitação e depois entrar em coma por falência do fígado (inércia física e intelectual). Frequentemente, este quadro de coma quando tratado é reversível, mas a doença não. O que fazer? Daí por diante, a esperança de uma vida digna estaria baseada no transplante hepático.
Dieta para pacientes com cirrose hepática
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)



              "Devemos comer para viver e não viver para comer"

                                                  Moliére

          Nota do autor


   Exemplo de cardápio programado para um paciente não diabético, com cirrose hepática compensada (sem inchaço ou barriga d'água) e peso variando entre 60 a 90 quilos. A melhor dieta é sempre dirigida ao paciente pelo médico assistente, nutrólogo ou nutricionista. Portanto, antes de seguir qualquer dieta padronizada, ouça seu sempre seu médico assistente, o nutricionista (graduado em nutrição) ou o nutrólogo (médico especialista) de confiança.                                



Alimentos permitidos:
Arroz branco ou integral
Feijão preto, marrom, branco ou outros tipos
Óleo de girassol, oliva ( usar constantemente ), milho
Margarina sem sal, tipo Becel
Carne branca (frango, peixe, peru)
Bacalhau sem sal
Carne de soja
Queijo de soja
Qualquer tipo de farinha (tapioca, mandioca)
Qualquer tipo de verdura (crua ou cozida)
Frutas (manga,abricó,ata ou fruto do conde,melão,tucumã,maçã,banana- prata,biriba,
mamão,abil, pêssego)
Frutas (pêra, sapotilha,abacate,uva,figo,caqui).
Café.
Chá preto ou verde (uso moderado)
Comer bastante couve, espinafre, brócolis
Lentilha, ervilha, milho (sempre cozido)
Clara de ovo 3 (três) no café da manhã (cozida)
Pão e macarrão integral ou de glúten
Leite de soja
Suco de frutas (cajú, maçã, mamão, melão, pêra)
Um litro de líquido (água ou suco) por dia
Seis castanhas-do-pará por dia
1-2 gramas de sal por dia: uma pitada= 1gr


Evitar sempre:

Alimentos fritos, gordurosos e oleosos
Alimentos de consistência endurecida, torrados, cortantes e volumosos
Carne Vermelha (boi, porco, caça, peixe-boi, tartaruga, carneiro,
vísceras, pato)
Frutas cítricas ou ácidas (limão, laranja, abacaxi, maracujá)
Leite animal in natura e derivados (queijo amarelo, manteiga)
Refrigerantes
Qualquer tipo de bebida alcoólica
Alimentos conservados em lata (seleta de legumes, patê, atum, sardinha, etc.) ou defumados(calabresa, salsicha, presunto,etc.)
Gema de ovo (galinha, codorna, tartaruga, tracajá)
Pão de massa branca, bolachas, biscoitos
Massas (macarrão com ovos, pizza, pastel, tortas, etc)
Chocolate, Sorvete, Creme de leite, Leite condensado
Qualquer tipo de pimenta (reino, murupi, malagueta, de cheiro)
Frutos do mar (camarão,lagosta,lula,caranguejo, etc.)



1.- Café da manhã

a) Uma xícara de café ou café com leite de soja (150ml-200ml) adoçado com açucar.
Se diabético, use derivados de açúcar artificial
b) Uma fátia de pão integral
c) Pode passar geléia no pão
c) Três claras de ovo (cozidas). Coloque às três claras de ovo em um recipiente com um pouco de margarina (sem sal) e leve ao microondas por 35 segundos.
d) 50 gramas de queijo de soja
e) Um copo de suco de frutas (100ml)
f) Uma unidade de fruta

2.- Almoço

a) Três colheres de sopa de arroz branco ou integral. Temperado normalmente (alho, cebola, azeite de oliva).
b) 300 gramas de filé de peixe ou 200 gramas de frango ou 200 gramas de
peito de peru. Temperar com sal (0,5gr). Grelhar ou assar. O frango ou peixe pode ser cozido com batata, abóbora ou chuchu.
c) Uma concha média de feijão cozido com caldo (branco, preto, marrom)
d) Salada de verduras ou legumes (cozida ou semi-cozida). Usar oléo de oliva e um pouco de vinagre balsâmico para temperar.
e) Evitar ingerir líquidos durante às refeições
A sobremesa pode ser baseada em frutas (uma unidade), gelatina ou doce em calda

3. Lanche ou merenda da tarde
a) Uma xícara de café preto
b) Uma fruta ou uma fatia de pão
c) Seis castanhas do Pará (pode ser comida inteira, ralada ou batida no liquidificador com um pouco de água ou eite de soja)

4. Jantar
a) Sopa de verduras (200 ml) ou
b) Salada de verduras ou
c) Duas frutas
d) Pode ser feito o mesmo cardápio do almoço ou modificado de acordo com o gosto do paciente
Hepatite crônica e cirrose hepática ocasionada pelo vírus da hepatite B


José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)


A persistência do processo inflamatório agudo (hepatite aguda) no fígado por mais de seis meses e sem melhora clínica ou laboratorial (aumento das aminotransferases e persistência do antígeno de superfície do VHB{HBsAg} no sangue) é denominada de hepatite crônica B.

Os principais riscos de progressão para hepatite crônica B seriam:
1) pertencer ao sexo masculino (susceptível a perpetuação do VHB no organismo);
2) indivíduos imunodeprimidos;
3) uso de álcool;
4) ter associados outros vírus (HIV,vírus da hepatite C e Delta);
5) renais crônicos em diálise;
6) renais crônicos pós-transplantados;
7) homens portadores de HIV que fazem sexo com homens;
8) crianças portadoras da Síndrome de Down;
9) leucêmicos;
10) mutação genética do VHB.

Na fase inicial de doença, a maioria dos pacientes com hepatite crônica B é assintomática. Os sintomas, quando aparecem, são totalmente inespecíficos e geralmente predomina: falta de menstruação (amenorréia), falta de apetite (anorexia), espinha (acne), febrícula, cansaço fácil, dores musculares e articulares, mal-estar geral. Somente nas formas avançadas e graves verifica-se o aparecimento dos olhos amarelos e o aumento do fígado e baço. Nesta fase avançada de hepatite crônica, podemos observar alguns sinais clínicos de hepatite crônica, tais como: aranhas vasculares e eritema palmar. O aparecimento destes sinais seria um alerta de que o fígado começa a entrar na fase mais avançada da doença crônica, que seria a cirrose hepática.

A biópsia hepática é considerada indispensável para definir se um paciente tem ou não hepatite crônica.

Na fase cirrótica, nota-se aumento discreto do volume abdominal em decorrência do acúmulo de líquidos (ascite), os olhos tornam-se mais amarelos (icterícia), inchaço (edema) dos membros inferiores e outros sinais de insuficiência hepática crônica. O fígado diminui de volume e o baço aumenta cada vez mais.

Nas fases mais avançadas da cirrose hepática, o fígado reduz-se em três vezes o seu tamanho normal.É nesta fase da doença que um número significativo de pacientes evoluem frequentemente para câncer de fígado

Existe tratamento específico para as formas crônicas de hepatite B e as drogas mais utilizadas seriam o interferon alfa e peguilado, lamivudina, adefovir, entecavir,telbivudina e tenofovir. Nas formas crônicas de hepatite B, o percentual de cura (negativação do vírus B) é muito pequeno.

A prevenção contra a infecção pelo VHB dá-se através do uso costumeiro da camisinha, uso de seringas agulhadas descartáveis e utilizando seu próprio material (aparelho de barba, tesoura, alicate de unha, etc) e vacina contra a hepatite B.
Hepatite aguda pelo vírus da hepatite B(VHB)
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)
Imagem ilustrativa do VHB sob domínio público na internet


Do ponto de vista clínico, como se comportaria um indivíduo que adquire hepatite B? Do provável contato com o vírus B ao aparecimento dos primeiros sinais e sintomas (período de incubação) da doença, este período pode variar de seis semanas a seis meses. Ao se infectar com o VHB, um número significativo de pessoas se torna portadora crônica (assintomática) do VHB ou desenvolve forma aguda de hepatite. Os portadores crônicos do VHB são sempre assintomáticos, o vírus não se replica e nem agride o fígado e, conseqüentemente, os portadores não desenvolvem doença hepática. As taxas das aminotransferases (enzimas produzidas no fígado que aumentam quando o mesmo é agredido) cursam sempre normais.

Na fase aguda de hepatite B, observamos sintomas e sinais semelhantes a um estado gripal (febre, cansaço fácil, dor no corpo, falta de apetite). Os sintomas digestivos aparecem geralmente no quarto ou quinto dia de doença e são os seguintes: vômitos, enjôos, dor abdominal tipo cólica, os olhos ficam amarelos e a urina cor de guaraná regional. O fígado e o baço aumentam de tamanho. Alguns pacientes apresentam manifestações extra-hepáticas induzidas pelo vírus B em outros órgãos que não o fígado, tais como: inflamação no pâncreas (pancreatite), urticária, um tipo grave de anemia, inflamação no miocárdio (músculo cardíaco), lesão dos vasos (vasculite). Com o surgimento dos olhos amarelos, a febre tende a desaparecer e regride grande parte dos outros sintomas iniciais. Geralmente, o período agudo da doença resolve-se em média de 50 dias.

Existe tratamento para as formas agudas de hepatite B? Para combater o vírus, não. Devemos esperar a evolução natural da doença. Porém, se o paciente apresentar febre, dor de cabeça ou outra manifestação clínica da doença, prescreve-se tratamento sintomático (analgésicos, antitérmicos). Com relação à dieta, deve-se evitar frituras, alimentos gordurosos (queijos amarelos, manteiga, lingüiça), chocolate, bebida alcoólica e fumar. O repouso deve ser relativo e é bom evitar esforços físicos exagerados.

Como se faz o diagnóstico laboratorial de uma hepatite aguda B? Confirma-se pelo aumento das aminotransferases (enzimas produzidas no fígado que se elevam no sangue quando este órgão é agredido) e pela presença no soro dos marcadores de infecção aguda pelo VHB. O diagnóstico da hepatite aguda B não pode ser feito somente através dos achados clínicos ou pelo aumento das aminotransferases. Tal diagnóstico só é confirmado pelo encontro no soro dos marcadores de infecção aguda pelo VHB.

É bom lembrar que as manifestações clínicas e o aumento das aminotransferases são semelhantes em qualquer tipo de hepatite aguda, seja pelo vírus da hepatite A, medicamentosa, alcoólica e outras mais. Lembre-se: somente seu médico é capaz de analisar os resultados sorológicos e confirmar a causa de sua hepatite aguda.

Um grande número de pacientes que apresentam hepatite aguda B (95%) se cura, apesar do médico, com o médico ou sem o médico. Apenas um pequeno número (5%) de pacientes evolui para as formas crônicas de hepatite. A persistência do processo inflamatório agudo no fígado por mais de seis meses e sem melhora clínica ou laboratorial (aumento das aminotransferases e persistência do vírus B no sangue) é denominada de hepatite crônica B.
Como se adquire o vírus da hepatite B (VHB)
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)
Foto (microscopia eletronica) do VHB revelando particulas esféricas (setas). Imagem (free) sob domínio público na internet

A infecção pelo vírus da hepatite B (VHB) é um dos mais sérios problemas de Saúde Pública no mundo. Estima-se que existam aproximadamente 400 milhões de portadores crônicos desse vírus distribuídos em várias regiões do mundo. No Brasil, o cerne do problema estaria localizado na região Amazônica brasileira, em especial na Amazônia Ocidental. Dados mundiais de mortalidade revelam que anualmente mais de 30 milhões de pessoas morrem em decorrência da infecção pelo VHB.

O vírus da hepatite B (VHB) é um dos vírus com maior capacidade de infectar um ser humano. Uma só partícula do VHB é capaz de ocasionar uma hepatite aguda ou fulminante. Este vírus tem uma predileção pelo fígado e pode ocasionar um estado de portador crônico do VHB por toda a vida (sem doença hepática) ou progredir para as formas mais graves de doença que acometem o fígado, como cirrose hepática e câncer primário de fígado. Partículas do VHB foram observadas nos rins e pâncreas.

As principais formas de transmissão do VHB seriam:

1.-via parenteral direta ou indireta (injeções ilícitas por uso de drogas, material cirúrgico não esterilizado, máquinas de hemodiálise, transfusão de sangue e derivados, tatuagens, colocação de piercings e uso compartilhado dos utensílios cortantes contaminados utilizados por portadores do VHB, como barbeadores, navalhas, lâminas de depilação, tesouras, alicates de unha e cutícula);

2.- via sexual (heterossexuais promíscuos e homens que fazem sexo com homem);

3.- via vertical (mães infectadas pelo VHB e contaminando os recém nascidos durante o trabalho de parto).

As outras maneiras de você se contaminar com o VHB seriam: contato com qualquer tipo de secreção contendo o VHB em fase de replicação (saliva, esperma, suor, sangue menstrual, leite materno) e instrumentos médicos indevidamente esterilizados (endoscópico).

Os principais grupos de risco para adquirirem o VHB por ordem de freqüência e importância seriam:

a)indivíduos com vida sexual promíscua;
b)pacientes que recebem hemodiálise;
c)portadores de leucemia (repetidas transfusões);
d)profissionais que manipulam sangue e seus derivados (dentistas, médicos, laboratoristas, técnicos de enfermagem);
e)toxicômanos;
f)recém-nascidos de mães portadores do VHB;
g)convívio íntimo com portadores do VHB;
h)turistas e militares que viajam para as áreas endêmicas.
Fumar faz mal para o fígado?

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia).


Inicio este artigo conscientemente afirmando que o hábito de fumar cigarro (tabaco, maconha), charuto ou cachimbo não faz bem para ninguém, muito menos para quem convive ou está próximo do fumante. Senti e ainda sinto na própria pele, digo, no pulmão, o legado do triste e idiota “vício de fumar cigarro”. Deixei de fumar há 14 anos e, de vez em quando, ainda sinto as sequelas que o fumo deixou. Faltam ainda seis anos de minha vida para que eu seja considerado um “não fumante”. Com certeza, chegarei lá e muito bem, livre do cigarro e das doenças que o cigarro ocasiona.

Sabemos que o hábito de fumar provoca alterações nos vasos e artérias que irrigam o coração (infarto agudo do miocárdio) e o cérebro (derrame cerebral). Os produtos tóxicos do cigarro lesam diretamente o esôfago (inflamação e refluxo ácido), estômago (gastrite, úlcera) e pulmão (enfisema pulmonar). Claro, não devemos esquecer também que o tabaco provoca câncer, seja de boca, traquéia, laringe, esôfago, estômago, pulmão e bexiga. O efeito nocivo do cigarro ao organismo deve-se à liberação de mais de 400 toxinas (produtos tóxicos) e 43 substâncias cancerígenas contidas na fumaça.

O que acontece com o fígado dos que ainda teimam em fumar? É importante saber que o fígado tem uma função importante na filtragem (processo químico) do sangue. Ao ingerirmos substâncias prejudiciais ao organismo, o fígado as expele pelo intestino através das fezes. Imagine agora o que acontece quando fumamos e aspiramos 400 toxinas e 43 substâncias cancerígenas. Grande parte dessas substâncias nocivas são absorvidas pelo pulmão e, através do esôfago, caem na circulação sangüínea e vão diretamente para o fígado.

Diante de tanto lixo provocado pelo tabaco, o que faz o fígado? Ele tenta de todas as maneiras possíveis filtrar tais toxinas e produtos cancerígenos, purificando assim nosso organismo. Mesmo assim, após tanto trabalho, a função do fígado acaba sendo comprometida, principalmente se ele já for um fígado doente.

Nos últimos cinco anos, diversas publicações médicas-científicas sugerem que fumar faz mal para o fígado e o tabaco é um fator de risco para o câncer de fígado. Estudos experimentais realizados em animais indicam que o fígado é altamente sensível às substâncias cancerígenas do tabaco. Grande parte das cobaias nas quais foram inoculadas substâncias cancerígenas provenientes do tabaco desenvolveram câncer de fígado, fato não evidenciado entre cobaias que receberam placebo (substância neutra e sem ação farmacológica).

Estudo publicado recentemente no British Journal of Cancer (2004) revela a alta incidência de um raro tipo de tumor do fígado (hepatoblastoma) e sabidamente fatal entre crianças inglesas parentes de fumantes. O risco de desenvolver hepatoblastoma é duas vezes maior entre crianças parentes de fumantes do que em parentes não fumantes.

Os resultados de vários estudos revelam que o hábito de fumar acelera ou agrava uma doença hepática pré-existente, principalmente se o fumante for portador de uma destas doenças: esteato-hepatite (processo inflamatório no fígado provocado por deposição de gordura), hepatite crônica pelos vírus das hepatites B e C ou outro qualquer tipo de hepatite crônica. Se o fumante é portador de cirrose hepática (alcoólica, viral, auto-imune, deficiência de alfa 1 anti-tripsina) ou biliar, aí as coisas se agravam. Pacientes cirróticos fumantes, independentemente da causa, apresentam um risco muito grande de evolução para câncer primário de fígado.

Se o paciente é portador de doença hepática crônica ocasionada pelo vírus da hepatite C (VHC), o hábito de fumar pode ocasionar vários problemas. O primeiro e preocupante problema médico está relacionado com a maior gravidade da doença entre fumantes. O ato de fumar entre os pacientes com hepatite crônica C aumenta a destruição do tecido (necrose) do fígado e faz com que o paciente desenvolva uma cirrose hepática bem mais rápida. É importante informar ainda que, entre esses pacientes, geralmente se observa um nível maior das enzimas hepáticas (TGO ou AST, TGO ou ALT), fato não observado entre pacientes não fumantes. O aumento dessas duas enzimas indica que o fígado está sendo agredido e está ocorrendo hepatite aguda ou crônica. O segundo e mais grave problema é que pacientes fumantes com cirrose hepática pelo VHC tem um risco três vezes maior em desenvolver câncer primário de fígado do que os pacientes não fumantes com cirrose hepática por esse vírus. Se você bebe, fuma e tem hepatite crônica ou cirrose pelo VHC, o risco para ter câncer primário de fígado aumenta para cinco vezes mais.

Finalizando este artigo, concluo, baseado em tantas evidências científicas, que fumar também faz mal o fígado, seja esse sadio ou doente. Agora, veja bem, se você, alguém da sua família ou conhecido tem alguma doença crônica no fígado, principalmente ocasionada pelo VHC, chegou a hora de largar definitivamente tal vício, antes que seja tarde. Não se esqueça ainda que alimentar o vício do cigarro, charuto e cachimbo só faz bem para os bolsos dos donos das empresas que os produzem ou para os que lucram com a venda de tais produtos, tão nocivos ao nosso organismo.