Natal e Réveillon: cuidado com o seu fígado

José Carlos Ferraz da Fonseca 
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia).






Na “Santa ceia”, Jesus Cristo ofereceu aos seus apóstolos somente “pão e vinho”. Uma ceia muito espartana, tenho que concordar. Mas é claro que nas festas do ano novo a maioria dos leitores não repetirá a dieta à base de pão que Jesus e os apóstolos fizeram naquele momento de significado tão religioso. O pão será somente um complemento e quem gosta do líquido santo e precioso só beberá vinho. Tive um paciente com cirrose hepática alcoólica que gostava de dizer que só gostava de beber vinho tinto. Afirmava com toda convicção que tal bebida não fazia mal porque era igual ao sangue de Cristo: encarnado (vermelho), puro e milagroso. Escrevendo como médico e não filosofando, é difícil entender certas projeções dos viciados no álcool. 

Lembro de uma das novelas de Dias Gomes (dramaturgo brasileiro), em que uma das personagens chamava-se Dona Redonda. Alguém lembra? Pois é, ela explodiu de tanto comer, não sei se foi na passagem de ano, mas que ela explodiu, explodiu. Nas consultas médicas de dezembro, é comum que os meus pacientes no final tenham sempre uma pergunta arquitetada durante o dia e na ponta da língua: “Doutor José Carlos, posso comer e beber no Réveillon?” Com certeza, eles sabem o que faz mal, pois tenho como norma clínica explicar aos meus pacientes o que é bom e o que é ruim para a sua saúde. Fico na berlinda se respondo se pode ou não, pois adoro os quitutes da passagem de ano, menos qualquer coisa que contenha álcool. Infelizmente, as palavras “pena” ou “coitadinho” não existem no dicionário da minha especialidade. A qualidade de vida dos pacientes com qualquer doença do fígado depende muito mais dos próprios pacientes do que do médico que o assiste.

O que realmente faz mal para o fígado? Muito pouca coisa, se você não tem nenhuma doença hepática ou predisposição a tê-la. Todavia, se você tiver alguma doença no fígado ou predisposição e encontra-se em fase de tratamento, quase tudo faz mal, até um doce suspiro comido na hora errada. 

Começamos pelo excesso de bebidas alcoólicas. O dano ao fígado causado pelo álcool está estritamente relacionado à quantidade, freqüência e duração do tempo de consumo de álcool.  Se o leitor deste artigo, ou alguém bem próximo, beber diariamente 60-80 gramas de álcool (duas doses de cachaça ou uma de conhaque e mais duas latas de cerveja), por mais de 5 a 12 anos, provavelmente, terá grandes possibilidades, desde que seja suscetível, de desenvolver uma cirrose hepática alcoólica. Contudo, em muitos alcoólatras, a cirrose hepática nunca ocorre, mesmo após décadas de ingestão de álcool excessiva. Pronto: se você não tem nenhuma doença hepática, beba moderadamente no Réveillon e nada acontecerá ao seu fígado. Um outro aviso: cuidado, o álcool não faz mal só para o fígado. A ingestão abusiva pode fazer com que o machão extravase em público o seu lado feminino. Há mais problemas: tanto o homem como a mulher podem sofrer de estômago (gastrite, úlcera), de perda da potência sexual (homem) e da libido (homem, mulher), do pâncreas, do coração e dos nervos. Muito acabam perdendo o juízo, ocasionando os mais graves delitos, seja no trânsito ou em sua própria casa. Os crimes passionais são na maioria das vezes ocasionados pelo consumo exagerado de álcool.

Com relação aos quitutes do Réveillon, o que realmente faria mal para uma pessoa com o fígado sabidamente sadio? Sabemos que todos os sintomas apresentados pelo paciente após tal ceia  estariam relacionados com o estômago, vesícula biliar e o intestino, e não com o fígado. Neste caso, o fígado do “rei  ou rainha da gordura e do álcool” teria que trabalhar dez vezes mais para processar e eliminar os elementos nocivos contidos na ceia do Réveillon (gorduras, toxinas químicas, sal), nos petiscos (gorduras, substâncias cancerígenas, conservantes, toxinas químicas, sal) e bebida alcoólica (etanol). Em decorrência da alta concentração de colesterol nos petiscos e ceia, o fígado usaria esta superoferta de colesterol para produzir excessivamente uma substância chamada bile ou bílis (substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado), que seria eliminada para o duodeno (primeira porção intestino delgado) e intestino (mistura-se com os alimentos para ajudar na digestão). Parte da bile seria absorvida pelo estômago e daí provocaria boca amarga e com gosto de água de lavar espingarda ou de fel. Quem ainda não foi personagem desta história, que atire a primeira colherada de maionese.

Se você tem pedra na vesícula, aí a história é diferente. Depois dos comes e bebes do Réveillon, lá pelo fim da madrugada começa a sessão de gases incontroláveis e inconvenientes, boca amarga, cólica, o teto roda, existe uma sensação de que a barriga vai explodir (distensão abdominal), o guloso ou gulosa chama os filhos para se despedir e diz que desta não escapa. No dia seguinte, logo pela manhã o paciente refere intolerância a alimentos e diz com toda moral possível que nunca mais vai repetir o que fez ontem. 

Geralmente o almoço do dia primeiro é o que sobrou da véspera. E aí? Conheço muita gente que adora pegar os restos do peru ou porco (ossos do barão) que sobrou do jantar da véspera, colocar jambu, tucupi e oferecer no almoço o novo prato: “peru ou porco no tucupi”. Jambu e tucupi são produtos culinários típicos da Amazônia brasileira. Existem pessoas que afirmam que é um verdadeiro manjar dos deuses, ainda não ousei provar.  O tucupi é um dos produtos derivados da mandioca mais indigesto e erosivo da camada que envolve o estômago (mucosa) que eu já conheci na minha vida. Quer saber se você tem gastrite ou úlcera? Tome um gole de tucupi e a dor é imediata.



Um conselho aos que tenham alguma doença no fígado: continuem evitando excessos na comida e não se esqueçam que não podem beber quaisquer bebidas alcoólicas. Finalizando este artigo, sugiro a todos que na passagem do ano evitem comer e beber álcool em excesso, já que não existe uma droga capaz de proteger o seu fígado contra as nossas extravagâncias. Deixe que o seu fígado cumpra normalmente sua função e tenha uma melhor qualidade de vida em 2017. Um feliz natal e um ano novo com muita saúde. É o que desejo do fundo do meu fígado, digo coração, a todos meus leitores.
O fígado e a febre tifoide
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)



Nesta foto verifica-se 
fígado com inúmeros abscessos (setas amarelas) em decorrência da infecção aguda pela salmonella typhi (imagem obtida em sites educacionais na internet)








Nesta foto observa-se inúmeras lesões rosadas (roséolas tíficas) na região peri umbilical (setas amarelas). O quadro infeccioso agudo provocado pela salmonella typhi no referido paciente, foi extremamente grave (foto pertencente ao arquivo do autor deste blog).



A relação entre a bactéria causadora da febre tifoide (salmonella typhi) e a minha família não é muito amistosa. São duas, as histórias familiares de doença ocasionada pela famigerada bactéria. A primeira, ocorreu no começo dos anos quarenta. Minha tia Zizinha, irmã de minha mãe, morreu prematuramente aos 12 anos de idade em decorrência das complicações (perfuração e hemorragia intestinal) da chamada doença febre tifoide ou tifo. É bom lembrar ao estimado leitor que, no inicio dos anos quarenta, não existiam antibióticos para tratar febre tifoide ou outra qualquer doença provocada por bactérias, tais como: amidalite, sinusite, pneumonia, infecção urinária. O cloranfenicol, antibiótico indicado para o tratamento da febre tifoide só foi descoberto em 1947.

Na segunda história, o editor deste blog foi a vítima. Aos cinco anos de idade, precisamente em 1954, minha babá, de nome Sarah e nativa de Barbados (Caribe), comprou algumas ameixas secas na taberna que ficava na esquina da rua Saldanha Marinho com a Costa Azevedo e me deu para comer. Passados alguns dias, segundo informações da minha mãe quando viva, tive uma bruta febre por mais de oito dias, diarreia e fiquei com os olhos discretamente amarelos (icterícia). Minha doença foi diagnosticada e tratada como febre tifoide pelo grande médico e amigo de meu pai, o saudoso Dr. Jorge Mendes. Felizmente, em 1954 já existia o cloroafenicol importado da Alemanha, cujo nome era Cloromicetina, fabricado pela Bayer. Nunca esqueci o tal remédio, o frasco era maior do que um botijão de gás (exagero da minha parte), o líquido era grosso, gorduroso, amarelo e tinha um gosto horrível, bem pior do que o óleo de fígado de bacalhau ou da mamona. Mas, para a alegria de muitos no passado e para a tristeza de “uns míseros” no presente, fiquei curado e estou aqui escrevendo estas duas histórias familiares.

O estimado leitor deve ter estranhado o quadro clínico que apresentei quando fui acometido de febre tifóide, principalmente quando digo que os meus olhos ficaram amarelos (ictéricos). E aí vem a pergunta clássica: febre tifóide pode dar problemas no fígado (hepatite)? Claro que sim, não resta nenhuma dúvida, mas só lhe explico com maiores detalhes, daqui alguns parágrafos. Antes, preciso informá-lo sobre algumas generalidades da doença.

A febre tifoide prevalece em regiões onde o saneamento básico é inadequado e tem maior incidência (casos novos) nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. No Estado do Amazonas, as sedes dos municípios de Coari, Codajás, Manacapuru e Manaus aparecem como as de maior incidência entre os anos de 2004 e 2005. A bactéria responsável por essa doença (salmonella typhi) se transmite por via fecal-oral (fezes-boca).

A salmonella pode ser encontrada nas seguintes fontes de infecção: águas contaminadas (igarapés, poços, cacimbas, charcos), alimentos vendidos na rua por ambulantes, alimentos industrializados (maionese, sorvete, catchup, margarina, manteiga), carne crua, mariscos, no leite de vaca não esterilizado, queijo coalho (comum em nosso meio), verduras (alface, couve) e muito mais. Na carne congelada e na margarina a salmonela pode viver, de dois meses a três meses, respectivamente. Todavia, o maior problema da disseminação e transmissão da bactéria está exatamente entre os humanos portadores crônicos ou “sãos” da bactéria (sem doença). Tais portadores albergam as salmonelas na vesícula biliar e posteriormente as salmonelas são excretadas pelas fezes no meio ambiente.

É muito comum que cozinheiros(as) ou portadores(as) “sãos” da bactéria contaminem os alimentos durante o processo de preparação e manipulação através das mãos sujas de fezes infectadas pela salmonela. Viajantes de barcos de recreio que singram os rios do estado do Amazonas, freqüentemente se contaminam com a bactéria e apresentam quadro clínico de febre tifóide. Tal fato é muito comum em nossa região. Acreditamos que o problema de transmissão no barco está na água servida ou nos alimentos armazenados impropriamente, como também nos tripulantes da cozinha portadores crônicos da bactéria manipulando os alimentos.

A febre (sempre alta, até 40ºC) é a queixa mais freqüente. Outros sinais e sintomas podem cursar junto com a febre, tais como: face congesta, a língua fica saburrosa (crosta esbranquiçada que recobre a língua), enjoos, o abdome encontra-se bastante doloroso, excepcionalmente nota-se manchas rosadas (roséolas tificas) na pele da barriga (segunda figura acima) e outras localidades. A dor de cabeça é severa, o paciente pode cursar com diarreia (esverdeada com aspecto de pirão de ervilha) ou prisão de ventre. O fígado e o baço crescem. Se não tratada há tempo, a doença se complica e os pacientes podem morrer de hemorragia intestinal por perfuração intestinal, o caso da minha tia Zizinha.

Um número significante de pacientes com febre tifoide, 30 a 40% apresentam comprometimento do fígado, ocasionando um tipo de hepatite, chamada de hepatite tífica. Além dos sinais e sintomas do quadro clínico da febre tifoide, os pacientes se queixam de muita dor ao nível da localização do fígado (7ª. a 9ª. costela direita), os olhos ficam amarelos (icterícia), a urina torna-se escura (colúria) e em alguns casos, as fezes ficam brancas (acolia). Ao examinarmos os pacientes, os olhos e a pele encontram-se amarelados, o fígado (hepatomegalia) e baço (esplenomegalia) aumentados de volume. Os exames bioquímicos estão alterados, principalmente as enzimas hepáticas (TGO ou AST, TGP ou ALT), chegando a níveis de 2000 a 3000 unidades, como acontece com as hepatites agudas de origem viral.

O que diferencia clinicamente a hepatite aguda tífica da hepatite aguda viral é o prolongamento da febre na hepatite tífica por mais de cinco dias. Por exemplo, na hepatite aguda ocasionada pelo vírus A, a febre não dura mais que cinco dias. Isolada a bactéria salmonella typhi do sangue ou das fezes é indicado o tratamento com antibióticos, com cura em 100% dos pacientes. A presença da salmonela no fígado pode ocasionar múltiplos abscessos no fígado.




Calcanhar rachado, pinta branca na unha e mão descamando são sinais de doença do fígado?

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)





Foto ao lado, revela paciente portador de calcanhar rachado (fissura cutânea), tendo como causa o aumento do ácido úrico (uricemia). Imagem pertencente ao arquivo do autor deste blog.

Na foto ao lado, podemos observar "pinta branca" na unha de um paciente. Imagem pertencente ao arquivo do autor deste blog.





De acordo com a maioria dos pacientes, tudo o que aparece no seu corpo está relacionado com o mau funcionamento do fígado. O fígado sofre agressões o dia inteiro e, ainda, é prejulgado como autor dos nossos erros. Se o indivíduo elimina gases (flatos) com odor de ovo podre ou enxofre é culpa do fígado ou do cachorro. Parte dos meus pacientes relata que: se a barriga crescer (plenitude pós-prandial), arrotar e ter azia após laudo almoço, regado a tudo que não presta, o fígado recebe logo a sentença - “ai bichinho fraco, tu tá negando fogo”. E por aí vai...

Seria verdade que o fígado do paciente glutão se vinga do próprio, rachando o calcanhar, manchando as unhas de pintas brancas e descamando as mãos? Nada disso é verdade. Mas, vamos explicar realmente o que acontece e o porquê.

No caso do calcanhar rachado (fissura cutânea), existem várias causas e as principais seriam:

a) porfiria cutânea tarda e outras porfirias(1);
b) esporão de galo (esporão do calcâneo);
c) atrito com sapatos;
d) problemas ortopédicos;
e) aumento do ácido úrico;
f) diabetes;
g) doenças vasculares;
h) micoses (fungos);
i) excesso de peso (obesidade)
j) úlcera do pé; e
l) alergia a produtos de limpeza.

O quadro de calcanhar rachado é caracterizado, em muitos casos, por dor ao andar e sangramento. O sexo feminino é o mais comprometido. O uso de sapatos, tipo alto e plataforma, favorecem o aparecimento da doença. Como podemos observar, nada tem a ver com o fígado. Nesses casos, o dermatologista ou o clínico deve ser procurado para diagnosticar e tratar o problema.

Muitas são as causas de pintas ou manchas brancas nas unhas, incluindo: traumas, anemia, micoses, psoríase, intoxicações por metais pesados (chumbo) e carência de nutrientes. A deficiência de cálcio, ferro, zinco e selênio no organismo podem ocasionar o problema. Alguns pacientes cirróticos, principalmente os de causa alcoólica, são carentes em zinco e, frequentemente, apresentam pintas brancas nas unhas. Todavia, sempre tenho como conduta o seguinte: oriento os pacientes à ingestão de zinco e outros minerais (comprimidos) ou que façam suplementação alimentar com tal mineral. A melhora é visível.

Apesar de receber o codinome de “calor do fígado”, o processo descamativo da pele das mãos não tem relação com o fígado nosso de cada dia. As principais causas seriam as que se seguem:

a) alergias a produtos de limpeza (sabão, detergente);
b) excesso de ácido úrico;
c) traumatismos;
d) dermatoses infecciosas (fungos, bacterianas);
e) hemocromatose (2); e
f) neoplasias.
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(1) As porfirias são um grupo de distúrbios provocados por deficiências das enzimas envolvidas na síntese do heme. O heme, um composto químico que transporta o oxigênio e confere a cor vermelha ao sangue, é um componente fundamental das hemoproteínas, um tipo de proteína encontrado em todos os tecidos.

(2) Hemocromatose é uma doença na qual ocorre depósito de ferro nos tecidos em virtude de seu excesso no organismo (leia neste blog artigo sobre a hemocromatose).

Vale a pena viver? Depende do seu fígado!
(Anônimo)


José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)




Imagem representando o imortal Prometeus sendo atacado por uma águia






Nada mais pontual do que iniciar este artigo lembrando o mito do semideus e imortal Prometeus, um dos Titãs da mitologia grega. Condenado por roubar o fogo dos céus e dá-lo à humanidade, recebeu como castigo de Zeus o sacrifício de ficar acorrentado a uma rocha no Cáucaso, onde diariamente uma grande águia bicava seu fígado. De acordo com a mitologia, parte de seu fígado era comido pela águia durante o dia, regenerando-se durante a noite. Ele sofreu essa tortura por muitos dias, anos e anos até ser libertado por Hércules. Na mitologia grega, Prometeus simboliza a força e a persistência contra a opressão.

O que existe de verdade na história do fígado de Prometeus apresentada na arena de um teatro pela primeira vez por Ésquilo na Grécia (século V antes de Cristo)? Tudo, apesar de ser puro simbolismo. Mesmo sendo imortal e nunca ter existido, o titã Prometeus tinha um fígado idêntico aos dos simples mortais, ou seja, capaz de se regenerar. Como Ésquilo sabia que o fígado de Prometeus podia se regenerar? Não tenho a mínima ideia e nem vou conjecturar o que aconteceu há mais ou menos 2500 anos. O que eu posso explicar cientificamente sobre a regeneração do fígado é o seguinte: durante a agressão aguda do fígado por determinados agentes (vírus, álcool, drogas), parte das células do fígado (hepatócitos) são destruídas. Os hepatócitos que não sofreram processo de destruição irão se regenerar totalmente, dando origem a novas células e, conseqüentemente, expansão do conjunto das células perdidas.

O melhor modelo para explicar a capacidade de regeneração do fígado acontece no transplante de fígado intervivos. Um familiar (pai, mãe, irmão, irmã, primo de 1º. grau) doa parte de seu fígado sadio que é removido e transplantado no familiar doente. Após o transplante, observa-se rapidamente um aumento do volume do fígado, tanto no doador como do receptor, caracterizando assim o processo de regeneração.
Sabendo que o fígado é o único órgão do nosso organismo capaz de se regenerar, pergunta-se: porque ele é tão importante para que tenhamos uma boa qualidade de vida? Veja, o fígado é o órgão interno mais durável do organismo, já que foi programado para viver funcionando normalmente por mais de 100 anos, diferentemente do que acontece com o coração, rins, pulmões e cérebro. Agora, se ele for agredido continuamente, seu tempo de sobrevida vai ser alterado e aí teremos que aguentar as conseqüências.

O que devemos fazer para que o nosso fígado continue funcionando normalmente. Basta seguir, sem ser compulsivo e fundamentalista, o que chamo aqui de: “as dez regras para um fígado feliz”.

A primeira regra e a mais importante na boa funcionalidade do seu fígado é não fazer da bebida alcoólica uma fuga para os seus problemas. A ingestão diária por um período longo de mais de 80 gramas de álcool (uma dose de cachaça ou vodca e mais duas latas de cerveja) constitui-se um alto de risco de doença hepática. O alcoolismo é considerado como uma das principais causas de cirrose hepática (fígado endurecido como pedra) no mundo. Se, no fim de semana, você gosta de uma caipirinha ou de uma cerveja estupidamente gelada, beba moderadamente. Com certeza, não vai lhe fazer mal, desde que o prezado leitor não tenha nenhum problema no fígado.

A segunda regra passa por sua atividade sexual. O uso de camisinha nas suas relações vai evitar que você adquira, por exemplo, o vírus da hepatite B (VHB), agente infeccioso de fácil transmissão sexual. Esse vírus é incriminado como a principal causa de cirrose hepática em nossa região. Se você não gosta de usar camisinha ou não dá tempo de usa-la, aí é outra história. Existe até vacina contra hepatite B e você pode se vacinar. Não existe vacina, contudo, para a AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, tais como: sífilis, esquentamento ou gonorreia (blenorragia), vesículas dolorosas no pênis e vagina(herpes), crista de galo (condiloma acuminado) e mula (linfogranuloma venéreo).

A terceira regra está inserida no tratamento e controle de determinadas doenças que podem provocar problemas no fígado, tais como: obesidade mórbida, doenças da tireóide, insuficiência cardíaca, enfisema pulmonar, hepatite crônica B, C e D, diabetes tipo 2 associada a esteato-hepatite não alcoólica. Cientificamente, observa-se que parte dos pacientes adultos com diabetes tipo 2 tem um aumento significativo de doenças hepáticas, incluindo cirrose hepática, quando comparados com a população geral não-diabética. Pacientes diabéticos têm um risco aumentado em sete vezes de apresentar endurecimento do tecido do fígado (fibrose).

A quarta regra, das dez para que o seu fígado seja feliz, baseia-se no controle do seu peso corpóreo. O que acontece no fígado em conseqüência do aumento de peso? Deposição contínua de gordura no fígado, podendo ocasionar processo inflamatório agudo (hepatite) e levar a uma doença chamada de esteato-hepatite aguda (hepatite aguda por deposição de gordura). Se não controlada e tratada a obesidade, a esteato-hepatite aguda torna-se crônica e um percentual bastante significativo dos obesos desenvolverão uma cirrose hepática ao longo do tempo. Redução do peso (dieta, cirurgia) e uso de determinadas drogas podem controlar a referida doença.

A quinta regra para um bom funcionamento do seu fígado e do seu inimigo pessoal encontra-se no hábito da boa alimentação. Evite alimentos que contenham gordura animal (carne vermelha gorda, pele de frango, bacon, linguiça, queijo amarelo, manteiga) e frituras. Em decorrência da alta concentração de colesterol nesses alimentos, o fígado usaria esta superoferta de colesterol para produzir excessivamente uma substância chamada bile ou bílis (substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado), que seria eliminada para o duodeno (primeira porção intestino delgado) e intestino (mistura-se com os alimentos para ajudar na digestão). Parte da bile seria absorvida pelo estômago e daí provocaria boca amarga e com gosto de água de lavar espingarda ou de fel. Em razão da ingestão excessiva de alimentos gordurosos, ocorreria no sangue um aumento dos triglicérides e colesterol e, conseqüentemente, deposito de gordura nas células do fígado (hepatócitos), ocasionando assim a esteatose hepática. Coma bastante peixe e frango sem pele (grelhado, assado, cozido), frutas e verduras. Só fazem bem.

A sexta regra está explícita no erro cultural  da automedicação. O uso de determinadas drogas e ervas pode ocasionar ao seu fígado, desde uma simples hepatite aguda medicamentosa, morte por insuficiência hepática fulminante até a cirrose hepática. Evite tomar remédios sem prescrição médica e ervas indicadas pelos parentes, comadres e vizinhos. No estado do Pará, existe relato científico de mortes (hepatite fulminante) pelo uso do chá e cápsulas da “sacaca”, aquela que é considerada por alguns como a oitava maravilha do mundo. Em fevereiro de 2015 tive duas pacientes que fizeram quadro de hepatite aguda por uso de chá de sacaca. A mais idosa, 75 anos, desenvolveu quadro de hepatite grave e foi necessário interna-la em unidade de terapia intensiva. Felizmente, no presente momento, a referida paciente encontra-se muito bem.

A sétima regra está na retirada eletiva (cirurgia) das pedras da vesícula (cálculo biliar). As pedras na vesícula biliar podem comprometer o fígado? Claro que sim. Quando a vesícula biliar repleta de pedras apresenta processo inflamatório (colecistite aguda), existe uma tendência de obstruir a passagem de biles para o intestino. A bile não excretada reflui para o fígado, torna-se tóxica e vai ocasionar hepatite aguda. As bactérias responsáveis pela inflamação da vesícula biliar podem ascender para o fígado e daí podem provocar um quadro infeccioso agudo, geralmente grave, tendendo a formação de hepatite aguda infecciosa (bacteriana) e posteriormente de abscessos no fígado. Se não tratado, o paciente poderá morrer com infecção generalizada.

A oitava regra é bem atual. Não fume, o cigarro faz muito mal para o fígado. Os resultados de vários estudos revelam que o hábito de fumar acelera ou agrava uma doença do fígado pré-existente, principalmente se o fumante for portador de uma dessas doenças: esteato-hepatite aguda(processo inflamatório no fígado provocado por deposição de gordura), hepatite crônica e cirrose hepática pelos vírus das hepatites B e C ou outro qualquer tipo de hepatite crônica. Pacientes cirróticos fumantes, independentemente da causa, apresentam um risco muito grande de evolução para câncer primário de fígado.

A nona regra é ter que fazer transplante hepático se o seu fígado, de algum familiar ou de algum amigo não está mais funcionando (cirrose hepática em fase avançada e descompensada). Porque alguém precisaria fazer um transplante do fígado? É até simples explicar. É o tratamento de eleição de qualquer doença do fígado avançada, aguda ou crônica, não curável com outros tratamentos e que põe a vida do paciente em perigo ou induz a uma deterioração importante na sua qualidade de vida. Portanto, nada mais resta do que trocar o fígado doente e irrecuperável por um novo.

A última e décima regra é a mais importante de todas. Periodicamente, se você tem mais que 40 anos de idade, faça um exame clínico geral pelo menos uma vez por ano e assim o seu médico saberá como está funcionando o seu “precioso fígado”. Se tudo está bem com o seu fígado, ótimo, mas não o deixe de lado. Ele foi programado para viver mais de cem anos.
“O fígado é ainda um daqueles assuntos sobre os quais nós sabemos mais do que realmente é verdade”,
Kurt Aterman (1963).

Varizes esofágicas


José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em doenças do Fígado (Hepatologia)



Na foto ao lado (setas verdes) observa-se cordões varicosos (varizes esofágicas). Imagem livremente obtida através da publicação de Hideaki Kodama e cols (




























































AJR 2009; 192:122-130).

Pacientes portadores de cirrose hepática apresentam varias complicações relacionadas com o processo evolutivo da doença. As principais complicações seriam: barriga-d’água (ascite), hipertensão portal (complicação progressiva da cirrose hepática), sangramentos, infecções, desorientação (encefalopatia hepática) e outras mais. Das que mais preocupam os médicos, as varizes esofágicas ocupam sempre o primeiro lugar.

O que são varizes esofágicas e porque essas aparecem no cotidiano do paciente cirrótico. A cirrose, estágio final da doença hepática crônica, é a causa mais comum do aumento acentuado da pressão venosa do sistema portal, denominada como hipertensão portal. Assim, podemos conceituar hipertensão portal como: aumento da pressão entre a veia porta e a veia hepática (> 6mmHg). Portanto, se as veias do sistema porta aumentam por pressão, as veias contidas na parede do esôfago e estomago dilatam-se e podem ocasionar ruptura.

São excepcionalmente raras as complicações clinicas da cirrose hepática que não estão diretamente relacionadas com a hipertensão portal. Pacientes cirróticos em estágio inicial não apresentam durante a consulta médica, sinais e sintomas que possam sugerir o diagnostico de hipertensão portal.

A hipertensão da veia porta pode ser classificada como: pré-hepática, que caracteriza-se pelo aumento da resistência nas veias porta ou esplênica (formação de trombos, compressão tumoral); hepática (cirrose, esquistossomose, hepatite alcoólica, toxinas); pós-hepática (doenças cardíacas, trombose).

Como sabemos, a principal complicação da hipertensão portal é a ruptura das varizes esofágicas, principalmente entre pacientes com cirrose hepática descompensada (albumina baixa, infecções, barriga d’água, encefalopatia hepática, uso de drogas para disfunção erétil). Quando ocorre tal ruptura, observa-se hemorragia digestiva. O quadro de hemorragia pode ser discreto ou exacerbado. Quando discreto, ocorre o relato de fezes escuras pelo paciente. Se exacerbado, o paciente tem inicialmente enjoos (acumulo de sangue vivo no estomago) e depois vomita sangue (hematêmese), que pode ser vivo ou coagulado. Outro sinal é a presença de sangue nas fezes (melena).

A endoscopia digestiva alta é o melhor método de diagnóstico para a detectação das varizes esofágicas e gástricas. Estudos revelam que 40% dos pacientes cirróticos compensados apresentam varizes no esôfago. Entre cirróticos descompensados, o percentual é bem maior, em torno de 60%.

No exame endoscópico, o calibre das varizes revela o grau de gravidade. O exame endoscópico permite medir a pressão das varizes, tratar varizes sangrantes ou não (ligadura ou esclerose das varizes). Se o calibre é fino, não indicamos qualquer procedimento terapêutico, apenas monitoramos. Se as varizes são de médio ou grosso calibre, temos como conduta profilática indicar a devida ligadura ou esclerose por endoscopia.

No tratamento das varizes esofágicas podemos utilizar varias drogas, tentando reduzir a pressão da veia porta. Porém, só indicamos o tratamento com drogas se ocorrer sangramento prévio. É importante frisar que após o primeiro episodio de sangramento varicoso, a probabilidade de ressangramento é bastante elevada, variando e 40% a 70% dos casos. Quando ocorre ressangramento, a mortalidade é muito alta.

O que podemos concluir com este artigo? Na minha clinica diária, ao diagnosticar um paciente com cirrose hepática, independente da causa, sempre indico estudo endoscópico digestivo, método este que dá ao médico assistente bastante segurança, evitando assim surpresas desagradáveis no dia-a-dia. Se o prezado leitor é cirrótico, compensado ou não, procure trimestralmente seu médico, pois só assim você evitara complicações maiores referentes à sua doença. A hemorragia digestiva por ruptura das varizes esofágicas é a meu ver, a mais dramática situação de urgência em que um ser humano enfrenta, seja ele o paciente, familiar ou o médico que o atende.

Recomendamos aos pacientes portadores de varizes esofágicas o que se segue: procure seu médico pelo menos duas vezes por ano (paciente com varizes de esôfago geralmente exige um acompanhamento permanente); fezes escuras tipo “borra de café”, podem ser o primeiro sinal de ruptura das varizes; evite deglutir alimentos cortantes (torradas ou bolachas); alimente-se de pequenas porções e mastigue bem; evite alimentos rugosos (ervilha de grão rugoso, milho, pipoca); fuja de drogas para disfunção erétil (Viagra ou Cialis); se usar bebida alcoólica, esqueça, pois o álcool é um doce veneno para o cirrótico; tenha cuidado com o aumento brusco da pressão intra-abdominal, como um espirro, um ataque de tosse, ou um esforço ao defecar, pois pode provocar rompimento das varizes.