O fígado doente e o estado de confusão mental (encefalopatia hepática)


José Carlos Ferraz da Fonseca



Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


Quando o fígado de um paciente é atingido por uma doença aguda grave (insuficiência hepática fulminante) ou crônica (cirrose hepática), observa-se alta concentração de amônia sanguínea. Como tal fato ocorre? Normalmente, a amônia é produzida no intestino pela atividade bacteriana, transportada para o fígado através da veia porta, metabolizada nesse órgão e transformada (quebrada) em ureia. Por outro lado, na presença de insuficiência hepática ou de extensa circulação colateral (o sangue passa por fora do fígado), como a que se desenvolve na cirrose hepática, a amônia se acumula no sangue em quantidades crescentes e impregna o cérebro. Quando o fígado doente se torna incapaz de eliminar a amônia, o acúmulo dessa substância no cérebro pode causar transtornos neurológicos e psíquicos, inclusive o estado de coma ou morte.

Pacientes com fígado sadio que desenvolvem insuficiência hepática aguda ou fulminante podem apresentar quadro de encefalopatia hepática aguda. As principais causas são hepatites virais (vírus da hepatite A, B, C, D e E), febre amarela, drogas empregadas no tratamento da tuberculose, uso prolongado de anti-inflamatórios, superdosagem (mais de 10 gramas) de paracetamol (tylenol), fígado gorduroso na gravidez e infecções graves.

O estado de encefalopatia hepática crônica ou confusão mental em pacientes cirróticos pode ser desencadeado por vários fatores e os mais importantes são:

a) ingestão de carne vermelha e outras proteínas animais(leite, ovos, queijos)[1];
b) hemorragia gastrointestinal (ruptura das varizes esofágicas)[2];
c) uso de álcool;
d) infecções (urinárias, intestinais, respiratórias, do líquido ascítico);
e) uso de sedativos (diazepínicos e seus derivados);
f) uso de diuréticos (furosemida, espirolactona);
f) prisão de ventre (obstipação intestinal)[3];
g) retirada de grande quantidade de líquido ascítico da cavidade abdominal;
h) gastrites e úlceras duodenais provocadas pelo Helicobacter pylori [4] .


Sabe-se que 70% dos pacientes com cirrose hepática desenvolvem estado de confusão mental (encefalopatia hepática crônica). As funções intelectuais, de personalidade e de consciência e as funções neuromusculares sofrem alterações e limitações.

Diversos estágios da doença são observados, desde o de latência até o coma profundo. Existem vários critérios para a classificação da encefalopatia hepática. O critério de mais fácil compreensão para o leitor leigo no assunto é o de West Haven (modificado por Harold Conn em 1994).

Grau 0 (encefalopatia latente): não são observados transtornos, todavia, o médico assistente pode detectar essa fase latente durante exame psicrométrico (prova de escritura, sequência de números, seguimento de linhas, números e símbolos).

Grau 1: perturbação discreta da consciência, euforia ou ansiedade, discreto flapping ou asterixis (ao estender as mãos, o paciente apresenta tremores e as mãos parecem “bater asas”), diminuição da capacidade de atenção, redução da capacidade de cálculo. Alguns pacientes nesse estágio de encefalopatia são diagnosticados erroneamente como portadores de arteriosclerose ou doença de Alzheimer.

Grau 2: letargia ou apatia (o paciente tem baixa atividade), desorientação espacial (não sabe onde se encontra), presença de flapping ou asterixis, mudança de personalidade, comportamento inadequado, diminuição da capacidade de cálculo matemático. Há casos em que pacientes internados em clínicas psiquiátricas, apresentando o referido quadro, são tratados como portadores de doenças de origem, essencialmente, psiquiátrica e não hepática.

Grau 3: sonolência diurna e insônia noturna, confusão mental, agressividade, flapping evidente e constante, desorientação no tempo e no espaço.

Atendido em março de 2009, o caso de um paciente diagnosticado como portador do grau 3 de encefalopatia hepática ilustra o assunto. Sua esposa vinha notando um comportamento estranho do marido (59 anos, portador de cirrose hepática alcoólica). Na consulta, informou que, dois dias antes, o paciente havia urinado dentro do guarda-roupa; comido, no café-da-manhã, pequenas esferas de isopor com leite (jurando ser farinha de tapioca); vestido a calcinha vermelha da esposa; passado batom; calçando a sandália plataforma da esposa e dito que iria assistir a um show do cantor Nelson Gonçalves (falecido em 18 de abril de 1998). Para completar o quadro, o paciente ainda havia perguntado à esposa quem era ela e qual o seu nome (eram casados há mais de 30 anos). No dia da consulta, o paciente teimou em me chamar de Dr. Sócrates, jogador de futebol do passado e responsável pela “democracia corintiana”.

No fim da década de setenta, escapei por pouco de morrer nas mãos de um paciente com encefalopatia. Durante o exame de um garimpeiro no leito hospitalar, ele começou a ficar agressivo e, de repente, tirou um canivete automático do bolso e disse que iria me matar. Gritando e com os olhos esbugalhados, afirmou que eu era o mensageiro do demo e queria roubar suas pepitas de ouro. Fui salvo por outro paciente, que conseguiu tirar a arma do garimpeiro.
O paciente foi medicado e melhorou do estado de agressividade. Porém, dois dias depois, faleceu por hemorragia digestiva incontrolável. Um dos seus filhos me procurou logo após o óbito e me entregou o canivete, dizendo-me: “antes de morrer, meu pai me pediu que entregasse o canivete ao senhor. Por favor, pegue, é seu”. Quis recusá-lo, mas o prezado leitor sabe muito bem que presentes dados por mortos não devem ser rejeitados. Agradeci e peguei o canivete, o qual repousa há mais de 30 anos no fundo de uma das gavetas da minha biblioteca. De vez em quando, olho meio desconfiado para a arma branca e penso com os meus botões: “meu Deus, escapei por pouco. Obrigado por indeferir minha passagem precoce para o outro mundo”.

Grau 4: estado de coma (nenhuma reação a estímulos verbais ou dolorosos), ausência de flapping, hálito hepático (lembra o cheiro de maçã podre).

Na maioria dos casos, o quadro de encefalopatia hepática é reversível com o tratamento. A identificação e a supressão do provável agente desencadeante do quadro devem ser a primeira medida a ser explorada, bem como deve ser interrogada a família do paciente.

Para cirróticos ou familiares de pacientes com o referido problema, é muito simples controlar e prevenir o estado de confusão mental, basta seguir dois conselhos básicos. Sentado ou em pé, o paciente cirrótico deve colocar seus braços em posição reta (na linha do coração). Deve aguardar alguns segundos e, se suas mãos levantadas apresentarem movimentos semelhantes ao “bater de asas”, provavelmente, o paciente está em processo de encefalopatia hepática. O segundo conselho é que o paciente cirrótico seja questionado pela família, todos os dias e várias vezes ao dia, sobre questões comuns, por exemplo, qual é o seu nome?, em que ano você nasceu?, como é o nome do bicho de estimação da casa?, qual a marca do seu carro?, qual é o seu time de futebol? Se houver lentidão nas respostas ou afirmações como “não sei ou não me lembro”, se disser que é “flamenguista” e a família sabe que o distinto é, desde criancinha, “vascaíno de carteirinha”, deve-se ligar imediatamente para o médico assistente, pois o paciente necessita de cuidados médicos.

___________________________

[1]A ingestão exagerada de proteínas, principalmente de carne vermelha, produz excesso de substâncias aminadas, que são uma grande fonte para a produção de amônia.
[2] O sangue retido nos intestinos (cólons) incrementa a produção de substâncias nitrogenadas (amônia), que não são adequadamente clareadas, metabolizadas ou inativadas pelo fígado.
[3] A retenção prolongada das fezes no intestino favorece a proliferação bacteriana produtora de material nitrogenado (amônia e outros produtos tóxicos). Assim, o paciente cirrótico deve defecar, pelo menos, duas vezes ao dia.
[4] O helicobacter pylori é um potente produtor da enzima uréase. Essa enzima catalisa a hidrólise (reação química de quebra de uma molécula pela água) da ureia em dióxido de carbono e amônia.
O fígado nos pacientes com AIDS

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)


Um número considerável de agentes infecciosos pode comprometer o fígado, principalmente entre indivíduos infectados pelo vírus da imunodeficiência adquirida (HIV) e com AIDS (doença estabelecida). Como sabemos, o HIV é um retrovírus que ocasiona aos seus portadores um estado de defesa muito baixo (defeito da imunidade celular) contra centenas de agentes infecciosos. As doenças que geralmente são benignas entre pacientes com um bom estado de defesa (excelente imunidade celular) tornam-se gravíssimas aos pacientes com AIDS, como a toxoplasmose, tuberculose, sarampo, hepatites virais, etc.

O fígado, em tese, não é um órgão pelo que o HIV tenha alguma predileção, como ele tem por outros órgãos e células. Contudo, na fase inicial de infecção pelo HIV, as células do fígado (hepatócitos) são infectadas por este vírus e tornam-se reservatórias do vírus, perpertuando e disseminando, assim, a infecção pelo HIV. Sabemos que a presença do HIV no fígado provoca efeitos mínimos, mas, quando o estado de defesa cai, infecções oportunistas e doenças cancerígenas provocam os mais diversos sinais e sintomas de agressão ao fígado. O comprometimento do fígado entre pacientes com AIDS pode ocorrer em decorrência de infecções oportunistas, doenças cancerígenas, induzidas por fármacos utilizados no tratamento da infecção pelo HIV (anti-retrovirais).

Entre as infecções por agentes oportunistas que invadem e lesam o fígado, as mais freqüentes seriam: bacilos da tuberculose (mycobaccterium tuberculosis, mycobacterium avium intracellulare), fungos (criptococcus neoformas, histoplasma capsulatum) e vírus (citomegalovírus). Nos pacientes com AIDS que desenvolvem infecção oportunista pelos bacilos da tuberculose, a doença expressa-se comprometendo o fígado e ocasionando dor abdominal, enjôos, vômitos, febre, suores noturnos intensos, diarréia crônica, os olhos e pele ficam amarelos, a urina tem coloração escura (cor de guaraná regional), o fígado cresce. A biópsia hepática torna-se necessária para confirmar o diagnóstico. O tratamento com drogas antituberculose deve ser indicado com a maior urgência.

Revisando a literatura médica, observei que existem poucos relatos de comprometimento do fígado por fungos, mas sabemos que isto pode ocorrer quando a infecção torna-se generalizada. Se a infecção tomar este rumo, o quadro clínico pelo comprometimento do fígado revelaria: febre, crescimento do fígado provocando dor no lado direito e superior do abdome, geralmente abaixo das costelas correspondentes. O que mais chama atenção é o aparecimento da icterícia (olhos e pele de coloração amarelada); daí a suspeita do comprometimento do fígado.

Entre pacientes infectados pelo HIV e com AIDS, o citomegalovírus é incriminado como um dos principais agentes infecciosos oportunistas capaz de provocar hepatite aguda e uma doença de nome esquisito, chamada colangiopatia associada a AIDS. O quadro clínico é muito discreto, caracterizado por febre moderada, icterícia discreta (olhos amarelos), mal-estar, perda de peso, aumento do fígado e do baço.

Doenças cancerígenas como o sarcoma de Kaposi e o linfoma não-Hodkgin (tipo de tumor cancerígeno) relacionadas à AIDS podem comprometer também o fígado, além de outros órgãos. No sarcoma de Kaposi, observamos um aumento considerável do fígado e baço. Em decorrência do aumento desses órgãos, alguns pacientes queixam-se de muita dor abdominal. Por outro lado, portadores do linfoma não-Hodkgin apresentam quadro clínico mais exacerbado e caracterizado por: febre alta, emagrecimento (perda progressiva de peso), olhos amarelos, fígado aumentado de volume e dor no abdome superior (boca do estomago).

A terapia anti-retroviral altamente ativa modificou totalmente o curso da doença pelo HIV, com uma drástica diminuição da morbidade (causas de doença) e mortalidade derivada de infecções oportunistas por bactérias, vírus, fungos e outros mais agentes infecciosos. Em contrapartida, o uso destas drogas anti-retrovirais acarretaram efeitos secundários gravíssimos, entre os quais podemos incluir a toxidade hepática. Merece especial atenção este efeito secundário (toxidade hepática), porque é a principal causa de morbidade e mortalidade entre pacientes coinfectados pelos vírus da hepatite B(VHB) ou pelo vírus da hepatite C (VHC). Os efeitos dessas drogas no fígado com freqüência motiva a suspensão do tratamento contra a AIDS. Aproximadamente 33% dos pacientes infectados pelo HIV se encontram infectados também pelo VHC, prevalência que aumenta 60-90% quando a infecção foi adquirida pelo uso de drogas ilícitas injetadas no músculo ou veia. Em alguns pacientes, a infecção pelo HIV acelera o curso clínico da doença ocasionada pelo VHC e a evolução para cirrose hepática é muita rápida, menos que 10 anos.

Com o advento das novas drogas anti-retrovirais, observamos freqüentemente o aumento de casos de insuficiência hepática fulminante (hepatite fulminante). Entre pacientes com AIDS e com doença hepática crônica (cirrose hepática) pré-existente, o uso dessas drogas ocasiona morte por falência do fígado. Várias drogas são utilizadas no tratamento do HIV ou como terapêutica e profilaxia das infecções oportunistas. Entre as drogas anti-retrovirais usadas, duas delas são potencialmente tóxicas ao fígado: a zidovudina e a didanosina. As duas provocam quadro grave de hepatite aguda e o paciente pode morrer de hepatite fulminante. Drogas utilizadas no tratamento das infecções oportunistas, como rifampicina, sulafametaxazol-trimetropim, isoniazida, pirazinamida, ketoconazole, fluconazole e pentamidina, também podem provocar quadro de hepatite aguda.

Termino este artigo com um pensamento de Moliére, esperando que o próprio leitor tire as suas devidas conclusões: “Quase todos os homens morrem dos seus remédios, não das suas doenças”.