Pimenta faz mal para o fígado?

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


Para que o meu estimado leitor tenha ideia da importância da pimenta no mundo antigo e, principalmente, durante o Império além-mar português, uma saca de 60 quilos de pimenta-do-reino custava aproximadamente 52 gramas de ouro. Na Idade Média, a pimenta-do-reino era considerada “moeda de troca”, como o ouro e a prata.

A pimenta sempre acompanhou o homem na evolução das espécies. Podemos citar, como exemplo, o encontro de sementes de pimenta em fezes fossilizadas (coprolitos) humanas e de animais que habitaram o mundo há milhares de anos. Há 9000 anos a.C., já existia registro do uso da pimenta no México, ou seja, o México sempre gostou de tudo apimentado. Semelhança com baianos (nascidos na Bahia) é mera coincidência.

Aos vinte anos de idade, meu avô paterno, português de Vila Nova de Gaia, deu uma de Indiana Jones e se aventurou pelo estado do Acre, Brasil. Durante sua estadia em solo brasileiro, o jovem aventureiro se apaixonou por uma índia e passou por maus momentos culinários e digestivos. Para mostrar aos pais da nativa a sua paixão e boas intenções, foi obrigado a comer cérebro cru de macaco, acompanhado de uma cuia (tipo de utensílio amazônico) de pimenta murupi (pimenta regional nativa da Amazônia brasileira). Apreciador do uso desse tempero, considero a pimenta murupi a de maior ardência no mundo, bem mais que a pimenta Carolina reaper (americana) e a habanero (mexicana).
Ao comer tal iguaria culinária, meu avô chorava de tanto ardor na boca e pedia água o tempo todo.

Os pais da pretensa noiva e os convidados riam da situação do meu futuro avô. Maltrataram-lhe tanto que, na madrugada do dia seguinte, meu futuro avô se direcionou à “famigerada civilização”. Logo depois do “acidente de percurso”, meu avô retornou para Portugal e se casou, aos 22 anos, com uma portuguesa, cerimônia cuja recepção, provavelmente, foi completada com ótima bacalhoada, regada a azeite de oliva e bom vinho. Destacando-se que a pimenta murupi não fez parte do cardápio!

Faz-se importante informar aos leitores que a pimenta murupi causa mais ardência na boca do que a picada de escorpião ou de arraia. Tenho um primo que come essa pimenta mastigando-a por inteira e suporta muito bem o ardor momentâneo e peculiar. Todavia, segundo informações confiáveis da esposa, o dia seguinte (the day after) do meu primo é triste – amanhece gemendo o seguinte: “oh meu Deus, por que me abandonaste, me ajuda...”.

No mundo, há diversas espécies de pimenta e as mais conhecidas seriam: pimenta-do-reino ou de Moçambique; Carolina reaper; malagueta (piri-piri); dedo de moça; rosa; da Jamaica; caiena; biquinho; síria; cumari; cambuci ou chapéu-de-frade; jalapeno; habanero; de bode; de cheiro e outras mais. Uma das pimentas mais fortes do mundo é a bhut jolokia, originária da Índia, apesar que os americanos consideram a Carolina reaper.

Existem várias substâncias liberadas pelas pimentas e essas são as responsáveis pela ardência na boca. Nas pimentas vermelhas, observa-se a liberação da “capsaicina”, enquanto a pimenta-do-reino libera a “piperina”. Tais substâncias, ao serem liberadas na boca, estimulam a produção de endorfinas que ativará receptores sensíveis na língua e na boca, desse modo, transmitindo ao cérebro que a boca está “pegando fogo”. Consequentemente, o cérebro vai dar uma de “bombeiro” tentado refrescar a boca e, assim, o prezado fã da pimenta vai começar a salivar, lagrimar e transpirar. Depois, vem a sensação de bem-estar pela produção de endorfina, sendo que quanto mais ardida é a pimenta maior é a produção da endorfina.

A capsaicina, substância que confere o gosto picante à pimenta vermelha, é a principal responsável pelas propriedades funcionais deste condimento. Por um lado, as principais propriedades seriam: inibição do apetite; controle da enxaqueca; ação antibacteriana; ação antioxidante; ação anti-inflamatória; expectorante; fluidificante de mucos; descongestionante; dissolução de coágulos sanguíneos. Por outro lado, comprova-se que a pimenta ingerida exageradamente estimularia, no estômago, a produção de determinados ácidos e, por conseguinte, o aparecimento de vários sintomas. Entre os quais, teríamos: gastrite (inflamação da mucosa gástrica); úlcera gástrica e duodenal; plenitude pós-prandial (sensação de ter um peso no estômago); gazes (flatulência); acidez; náuseas; vômitos. Agora, é válido informar que um copo de suco de limão, de cupuaçu ou de laranja é capaz de provocar acidez igual ou maior que uma simples pitada de pimenta.

A sabedoria popular afirma que pimenta malagueta é um santo remédio para hemorroida. Contudo, não concordo com tal conceito. Sabemos que o consumo de pimenta em pacientes portadores de hemorroida faz com que a doença se agrave, ocasionando maior dilatação das varizes do ânus, forte prurido e ardência, as consequências são piores do que picada de jiquitaia (formiga).

Sempre aconselhamos aos pacientes com cirrose hepática que se abstenham do uso da pimenta. Tal proibição é atinente ao fato de evitar problemas digestivos, inclusive se portadores de hemorroidas. Visto que mais de 80% dos meus pacientes com cirrose hepática carregam este ônus.

Estudos experimentais em cobaias revelam que a “capsaicina” e a “piperina”, substâncias fitoquímicas produzidas pelas pimentas, seriam incapazes de provocar qualquer tipo de agressão tóxica ao fígado. Segundo tal observação, quem comer pimenta e referir que o fígado está sofrendo, está culpando o órgão errado.

Por favor, evite tomar chás depurativos de pimenta, pois conheço vários casos de pessoas que tomaram e passaram muito mal, acometidas por vômitos e diarreia. Inclusive, algumas aludiram que “o diabo estava a mil e o fogo do inferno não apagava com nada”.

Sou um apreciador nato de pimenta, apesar da historia do meu avô. Na minha casa, coleciono dezenas de vidros de pimenta. Quando visito algum lugar do mundo, sempre, coloco alguns na minha maleta. Recentemente, visitei uma loja só de pimentas (foto) em St Augustine (Florida, EUA) e passei quase duas horas admirando as centenas de espécies de pimentas e molhos.

Cultuando, ainda, a pimenta, minha última conquista foi um vidro de pimenta que comprei em Kissimmee (Flórida, EUA) e se chama “Original Death Sauce” (molho original da morte). O vidro se parece com um filme de terror e vem até com uma pequena caveira plástica pendurada. Estou temeroso em abri-lo e fazer o devido uso. Pensei em chamar meu primo para testá-lo. Chamei, testou recentemente e quase pega fogo, passando dois dias reclamando das ardências digestivas.

Para finalizar este artigo, posso concluir que o uso da pimenta não ocasiona nenhum problema no fígado. Porém, evite exageros no uso da pimenta e quase nada fará mal ao seu organismo.