Como se adquire o vírus da hepatite C (VHC)
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, é estimado que 3% da população mundial esteja infectada pelo VHC, ou seja, mais de 170 milhões de pessoas. Na população adulta, em geral, os índices de prevalência variam de região para região e, entre alguns países, de etnia para etnia. No Brasil, estima-se que aproximadamente 2,1 milhões de brasileiros estejam infectados pelo VHC. No Estado do Amazonas, estudos realizados (população geral) revelam que 1,1% desta população é portadora deste vírus, ou seja, aproximadamente 21.171 amazonenses estariam infectados por este agente viral.
Os grupos de maior risco para infecção pelo VHC, antes da introdução da seleção pelos bancos de sangue do teste para o VHC entre 1990-1994, seriam os pacientes hemodializados (pacientes com insuficiência renal utilizando máquina de filtrar o sangue) com ou sem história de transfusão sangüínea, os pacientes politransfundidos com sangue e derivados (leucêmicos, hemofílicos, talassêmicos), receptores de sangue e hemoderivados, receptores de órgãos transplantados e de medula óssea. O principal mecanismo de transmissão do VHC está associado à via parenteral: termo médico utilizado para caracterizar uma via que não a digestiva para administrar medicamentos, drogas ilícitas ou lesões ocasionadas por elementos perfurocortante.
Na transmissão parenteral, o uso de drogas injetáveis (seringas e agulhas não descartáveis usadas em comunidade de drogados) é o principal e o maior fator de risco entre as pessoas infectadas pelo VHC nos Estados Unidos da América do Norte, Ásia e na Europa. Em determinados países do mundo, estudos de prevalência revelam que 45% a 80% dos usuários de drogas injetáveis que compartilham agulhas e seringas estão contaminados com o VHC e, em geral, a infecção pelo VHC ocorre nos primeiros meses de início do uso de tais drogas. Em áreas onde ocorrem altas taxas de infecção pelo VHC como Taiwan (República da China), o uso indiscriminado de injeções parenterais com seringas e agulhas não descartáveis seria a principal causa de sustentação do estado endêmico persistente da infecção pelo VHC dentro de comunidades.
A alta positividade para o VHC entre este grupo de risco estaria relacionada a injeções diárias, em alguns até 10 vezes ao dia, utilizando sempre o mesmo equipamento de aplicação e drogas com alto poder de dependência química, como a cocaína. Um dos meus pacientes se infectou com o VHC de uma maneira muito peculiar e desenvolveu forma aguda de hepatite aguda C dois meses após o acidente. Ao andar descalço no corredor de um grande hotel americano, sentiu uma fisgada no dedo e verificou que sangrava muito. Pensou que era um vidro quebrado. Infelizmente, era uma seringa agulhada com sangue, desprezada por algum drogado no chão do corredor e contaminada pelo VHC. Felizmente, não se contaminou com o vírus da doença AIDS.
Nas décadas de sessenta e setenta, era comum entre jogadores de futebol o uso de injeções endovenosas de vitaminas e substâncias energizantes (vitamina B12, glicose, tiaminose) com seringas e agulhas não descartáveis. Nas referidas décadas, como se sabe, usava-se somente seringas de vidro e as agulhas não eram descartáveis. O processo de esterilização das seringas e das agulhas fazia-se através de fervura, que durava no máximo 10 minutos . Os vírus das hepatites, para serem destruídos, necessitam pelo menos de 30-60 minutos de fervura a uma temperatura média de 120 graus centígrados. Provavelmente, o uso de injeções endovenosas em péssimas condições de assepsia fez que muitos jogadores se contaminassem com o VHC ou vírus da hepatite B (VHB). Hoje, atendo um número significativo de jogadores e alguns apresentam doença hepática crônica em fase avançada (cirrose hepática) pelo VHC e outros realizaram transplante do fígado ou estão na lista para serem transplantados.
Ainda sobre a transmissão parenteral, observa-se com menor freqüência entre os infectados pelo VHC a referência de outros tipos prováveis de exposição ao VHC, tais como:
1.- ritual da troca de sangue que ocorre entre crianças, denominado pela cultura popular como “irmãos de sangue” ou “irmãs de sangue”, ou entre adolescentes apaixonados, denominado de “amor de sangue” ou “unidos pelo sangue”. Tal ritual, disseminado em várias culturas, geralmente dá-se entre pares, cada um perfurando a polpa de um dedo da mão com o mesmo objeto perfurante não esterilizado do tipo canivete, agulha de costura, alfinete, espinho vegetal e até com espinha de peixe, como observado por nós na Amazônia brasileira. Após a perfuração, os indivíduos comprimem o dedo, flui o sangue, tocam-se dedo com dedo, acreditando os pares que ocorreu uma troca de sangue;
2.- escarificações religiosas;
3.- circuncisão;
4.- castração (amputação de clitóris);
5.- história de acidentes com agulhas desprezadas em parques públicos por usuários de drogas injetáveis;
6.- acidentes cirúrgicos ou de punção;
7.- história de acupuntura, tatuagens, piercing em determinadas partes do corpo;
8.- uso coletivo de cocaína intranasal. Como sabemos, indivíduos que aspiram cocaína apresentam constantes ulcerações ou lesões de mucosa nasal e com secreção muitas vezes sanguinolenta. O uso coletivo de instrumentos (canudo) para aspiração entre viciados poderia favorecer a transmissão do VHC.
A transmissão por via parenteral poderia se dar também através do uso compartilhado dos utensílios cortantes contaminados utilizados por portadores do VHC (barbeadores, navalhas, lâminas de depilação, tesouras, alicates de unha e cutícula) por familiares ainda não infectados pelo VHC. Adolescentes podem se contaminar com o VHC ao utilizarem o aparelho de barba do pai já infectado por este vírus. Infelizmente, tenho alguns casos em minha casuística.
A transmissão do VHC pode ocorrer não só do paciente infectado para o profissional de saúde, como também do profissional de saúde infectado para o paciente. Em 1996 foi reportada pela primeira vez a transmissão do VHC por um profissional de saúde (cirurgião cardíaco) a cinco de seus 222 pacientes. Todos os cincos pacientes infectados com o mesmo tipo de VHC do cirurgião sofreram cirurgia cardíaca para reposição de válvula. O mais provável mecanismo de transmissão do VHC entre o cirurgião e seus pacientes seria pela contaminação dos pacientes com o sangue do cirurgião produzido por lesões de seus dedos no ato do fechamento do esterno (osso que separa as costelas direita e esquerda). Um outro relato de transmissão do VHC de um profissional de saúde para um número considerável de pacientes ocorreu em Valência, na Espanha. Tal profissional de saúde, um médico anestesista portador do VHC, durante os procedimentos do ato de analgesia no centro cirúrgico, aparentemente injetava drogas anestésicas nos pacientes com o mesmo equipamento (seringa e agulha) que usava para injetar em si próprio.
Outros mecanismos de transmissão classificados como não parenteral seriam as transmissões sexuais, familiares e durante a vida do bebê no útero da mãe ou durante o trabalho de parto, chamada transmissão vertical (mãe-filho). Além do sangue e seus derivados, o VHC pode ser detectado em secreções e fluidos humanos, tais como: urina, sêmen, secreção vaginal, sangue menstrual, líquido ascítico (líquido seroso contido no abdome), líquido amniótico (líquido contido no útero da mãe envolvendo o feto), leite materno, bile (substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado), lágrima e saliva. Dos diversos tipos de secreções e fluidos de portadores crônicos do VHC, o sangue menstrual (1º. dia do período), o líquido ascítico, a saliva e o sêmen foram os que apresentaram as maiores taxas de positividade para o VHC, 100,0%, 100,0%, 48,0%, 24,0%, respectivamente. Apesar destas altas taxas de infecção, a transmissão sexual, familiar e mãe-filho (vertical) raramente acontecem.
Até o presente momento, não existe qualquer vacina contra o VHC e a melhor maneira de não se contaminar com o VHC é se prevenir seguindo resumidamente estas recomendações: evitar o uso de seringas e agulhas não descartáveis; praticar sexo seguro (uso de camisinha); todos os utensílios (barbeadores, navalhas, lâminas de depilação, tesouras, alicates de unha e cutícula) devem ser de seu uso exclusivo; em parques e praias públicas evite caminhar descalço; acupuntura, tatuagens e piercing só devem ser realizadas com material descartável. Resumindo, se você leitor, ou alguém que faz parte do seu círculo de amizade fizer parte dos chamados grupos de risco (tabela 1) para serem infectados pelo VHC, sugiro que procure seu médico assistente e com certeza ele tomará a conduta correta solicitando um teste no seu sangue para saber se você tem ou não o vírus da hepatite C, desde que você consinta, claro.
Tabela 1.- Quem deve realizar o teste (soro) para os anticorpos contra o VHC (anti-HCV),segundo o risco conhecido? ____________________________________________________________
1. Usuários de drogas médicas ou ilícitas injetáveis, inclusive a aqueles que o fizeram só uma vez em qualquer época da vida.
2. Pessoas que receberam fatores sanguíneos antes de 1992.
3. Indivíduos que receberam transfusão de sangue ou transplantes de órgãos antes de 1992.
4. Pacientes em hemodiálise.
5. Pessoas que apresentem dois resultados de transaminases anormais, ou que apresentem qualquer outra evidência de dano hepático.
6. Profissionais da área da saúde após acidente biológico ou exposição percutânea ou nas mucosas com sangue contaminado.
7. Filhos de mães (anti-HCV positivo) contaminadas.
8. HIV positivos.
9. Indivíduos com múltiplos(as) parceiros(as) sexuais ou histórico de doenças sexualmente transmissíveis.
10. Parceiros sexuais, por longo tempo, de infectados com hepatite C.
11. Usuários de cocaína inalada.
12. Pessoas com tatuagens ou piercings (brincos ou piercings no lóbulo da orelha não é considerado risco).
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3 comentários:
Uma aula de mestre da medicina. Parabens Senhor Doutor.
Sou médico e gostei muito deste artigo.
Parabéns Dr. José Carlos Fonseca
Artigo de bastante, utilidade e esclarecedor.Gostei muito
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