Síndrome de Gilbert

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)



Foto revela discreta icterícia (olho amarelo) em paciente jovem e portador da Síndrome de Gilbert. (Imagem pertencente ao arquivo do autor deste blog)




Frequentemente, tenho diagnosticado, em meu consultório particular, número significativo de pacientes portadores da síndrome de Gilbert, descrita em 1901 por Gilbert e Lereboullet. De origem genética (mutação no gene UGT-1A1) e de caráter familiar, essa síndrome acomete de 2% a 7% da população mundial e está relacionada a uma desordem do fígado (disfunção hepática), tendo como consequência a produção deficiente pelo órgão de uma enzima (UDP-glucuronil-transferase). O resultado dessa deficiência é o aumento no sangue de uma forma de bilirrubina – denominada bilirrubina indireta –, que leva ao quadro de pele e olhos amarelados (icterícia).

Os índices normais de bilirrubina são de 0,4 mg para a bilirrubina direta ou conjugada e de 0,8 mg para a indireta ou não conjugada. O valor total das bilirrubinas varia de acordo com o método de análise, mas considera-se o nível de 1,2 mg como o mais aceito.

Na síndrome de Gilbert, não são observados os sinais e sintomas clássicos da hepatite aguda, tais como febre, enjoo, vômito, urina escura (colúria), fezes esbranquiçadas (acolia) e aumento das transaminases. A icterícia, único sinal clínico da síndrome, pode existir desde o nascimento ou ser notada pela primeira vez na fase adulta do paciente e persistir até a velhice, tendendo a diminuir com a idade.

Fatores hormonais (em adolescentes do sexo masculino), infecções, exercícios físicos, longos intervalos de jejum e período menstrual ou pós-menstrual (caso de algumas mulheres) podem aumentar os níveis de bilirrubina não conjugada e ocasionar ou elevar o grau de icterícia. Pacientes adultos jovens e pertencentes ao sexo masculino são os mais comprometidos.
Além da icterícia, não existe nenhum outro sinal ou sintoma da síndrome de Gilbert. Todavia, alguns pacientes se queixam de fadiga, principalmente, quando os níveis de bilirrubina não conjugada no sangue ultrapassam 4,5 mg (o nível normal é de 0,8 mg). Provavelmente, a fadiga está relacionada com algum processo viral.

No exame físico, o fígado e o baço não são palpáveis. O único problema para o paciente portador da síndrome é estético, ou seja, periodicamente, os olhos e a pele se encontram ictéricos. Todos os pacientes se queixam das perguntas curiosas e maledicentes ouvidas no dia-a-dia, como:

a) Parece que a beltrana comeu uma pilha Rayovac; olha como está amarelinha, amarelinha.

b) Mano (irmão), teus olhos parecem dois bacuris (fruta regional do norte e nordeste brasileiro) maduros.

c) Mana (irmã), tu estás com aspecto da síndrome de JEC (Jesus está chamando). A paciente que contou esta história é médica e a “irmã inquisidora” é auxiliar de enfermagem).

A função do fígado é, geralmente, normal entre pacientes com a referida síndrome, ou seja, as transaminases apresentam sempre níveis sanguíneos não elevados (leia, neste blog, o artigo sobre transaminases). O único exame laboratorial alterado é o de bilirrubina não conjugada ou indireta. O fígado tem um aspecto normal, não existe qualquer tipo de lesão microscópica, embora, no exame ultrassonográfico de alguns pacientes, seja identificada infiltração gordurosa (esteatose hepática).

Afastadas outras causas de aumento sanguíneo da bilirrubina indireta (destruição das hemácias, fígado gorduroso, infecções, tumores malignos, cirrose, tireotoxicose e histórico de residência em grandes altitudes), o diagnóstico da síndrome de Gilbert não é difícil. Portanto, deve-se suspeitar da existência da doença quando um paciente apresenta elevação persistente da bilirrubina indireta sem outra causa aparente.

Com frequência, no diagnóstico da síndrome, é utilizado um teste denominado “teste de restrição calórica” ou “dieta das modelos”. O teste se dá da seguinte forma: na segunda-feira, é coletada uma amostra de sangue para dosagem das bilirrubinas; na terça-feira, o paciente ingere apenas 400 calorias em 24 horas (2 maçãs médias, uma fatia de abacaxi, uma banana prata, um copo de iogurte desnatado, uma fatia de pão integral); e, na quarta-feira, é coletada nova amostra das bilirrubinas. O que acontece? O resultado do exame da segunda-feira mostra um bilirrubina indireta ou não conjugada de 1,5 mg (a bilirrubina direta é normal). No exame de quarta-feira, 24 horas após a restrição calórica, o exame de sangue revela índices de 4,9 mg de bilirrubina indireta, ou seja, um aumento considerado, reforçando assim o diagnóstico da síndrome de Gilbert.

Por que isso ocorre? A restrição calórica aumenta consideravelmente os níveis de bilirrubina indireta em pacientes com deficiência da enzima UDP-glucuronil-transferase. No entanto, como se sabe, o jejum eleva também a concentração da bilirrubina em indivíduos normais, colocando em dúvida o valor do teste para distinguir a síndrome de Gilbert de outras doenças.

O uso de determinadas drogas, como o fenobarbital, seguido de redução dos níveis séricos de bilirrubina não conjugada, reforça também o diagnóstico.

É sempre bom lembrar que os testes devem ser aplicados por médicos especializados e nunca por curiosos ou por aqueles que seguem o ditado popular “de médico e louco todo mundo tem um pouco”.[1]

O prognóstico entre portadores da síndrome de Gilbert é excelente e, como a “doença” ocasiona apenas um problema estético (pele e olhos amarelados), não existe tratamento específico.
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[1]. No conto “O Alienista”, de Machado de Assis, é possível deliciar-se com as histórias do Dr. Simão Bacamarte (médico psiquiatra), que assim bradou em Itaguaí: “a saúde da alma é a ocupação mais digna do médico”. Triste sina a do Dr. Bacamarte, acabou se autointernando e morrendo no “Hospício Casa verde”, que ele mesmo fundou.

2 comentários:

Anônimo disse...

os comentarios descritos foram ate leves..
Imagine o constrangimento,muitas vezes publico, de ouvir, quando vc acha que alguem vai elogiar seus olhos e de repente a pessoa da um passo pra tras e fala: nossa seus olhos...vc esta com hepatite?
Ou, vc esta doente? Porque vc esta amarela desse jeito?
Nao eh facil, a auto estima vai la pro chao, e geralmente quando estou icterica,me sinto mal, enjoada,com cefaleia e tenho que ter jogo de cintura para me livrar desta esposicao.Nao eh so estetica, entende?

Anônimo disse...

Como Portuga também tive o mesmo problema.Durante anos sempre me disseram que tinha pele de cadáver e como sou muito branco...ainda pior. Andavam-me sempre a chatear para comer porque devia andar com anemia. Finalmente, aos 30 anos, entrei num consultório e uma alma caridosa mal olhou para mim disse-me que eu tinha este síndrome. Fez-se luz e lá comecei a entender esta minha aparência. Hoje não ligo e apenas tenho o cuidado de comer de 2 em 2 horas. Nada de complicado. Gostaria no entanto se alguém me poderia esclarecer do seguinte : é verdade que este síndrome é originário dos povos nórdicos ? Já li que sim. Se o for compreendo, porque a minha mãe também era muito branca e de olhos muito claros, como eu. É verdade que o sumo de Mangostão faz maravilhas nos nossos casos, regulando os níveis de TGO e TGP? Agradecia confirmação.