Quais as principais regras para um fígado sadio?
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)
Vale a pena viver? Depende do seu fígado!
(Anônimo)
Nada
mais pontual do que iniciar este artigo lembrando o mito do semideus e
imortal Prometeus, um dos Titãs da mitologia grega. Condenado por roubar
o fogo dos céus e dá-lo à humanidade, recebeu como castigo de Zeus o
sacrifício de ficar acorrentado a uma rocha no Cáucaso, onde diariamente
uma grande águia bicava seu fígado. De acordo com a
mitologia, parte de seu fígado era comido pela águia durante o dia,
regenerando-se durante a noite. Ele sofreu essa tortura por muitos dias,
anos e anos até ser libertado por Hércules. Na mitologia grega,
Prometeus simboliza a força e a persistência contra a opressão.
O
que existe de verdade na história do fígado de Prometeus apresentada na
arena de um teatro pela primeira vez por Ésquilo (poeta trágico grego)
na Grécia (século V antes de Cristo)? Tudo, apesar de ser puro
simbolismo. Mesmo sendo imortal e nunca ter existido, o titã Prometeus
tinha um fígado idêntico aos dos simples mortais, ou seja, capaz de se
regenerar. Como Ésquilo sabia que o fígado de Prometeus podia se
regenerar? Não tenho a mínima ideia e nem vou conjecturar o que
aconteceu há mais ou menos 2506 anos. O que eu posso explicar
cientificamente sobre a regeneração do fígado é o seguinte: durante a
agressão aguda do fígado por determinados agentes (vírus, álcool,
drogas), parte das células do fígado (hepatócitos) são destruídas. As
células do fígado (hepatócitos) que não sofreram processo de destruição
irão se regenerar totalmente, dando origem a novas células e,
consequentemente, expansão do conjunto das células perdidas.
O
melhor modelo para explicar a capacidade de regeneração do fígado
acontece no transplante de fígado intervivos. Certo familiar (pai, mãe,
irmão, irmã, primo de 1º. grau) doa parte de seu fígado sadio que é
removido e transplantado no familiar doente. Após o transplante,
observa-se rapidamente aumento do volume do fígado, tanto no doador como
do receptor, caracterizando assim o processo de regeneração.
Sabendo
que o fígado é o único órgão do nosso organismo capaz de se regenerar,
pergunta-se: porque ele é tão importante para que tenhamos uma boa
qualidade de vida? Veja, o fígado é o órgão interno mais durável do
organismo, já que foi programado para viver funcionando normalmente por
mais de 100 anos, diferentemente do que acontece com o coração, rins,
pulmões e cérebro. Agora, se ele for agredido continuamente, seu tempo
de sobrevida vai ser alterado e aí teremos que agüentar as
conseqüências.
O que devemos fazer para que o nosso
fígado continue funcionando normalmente. Basta seguir, sem ser
compulsivo e fundamentalista, o que chamo aqui de: “as dez regras para
um fígado feliz”.
A primeira regra e a mais
importante na boa funcionalidade do seu fígado é não fazer da bebida
alcoólica uma fuga para os seus problemas. A ingestão diária por um
período longo de mais de 80 gramas de álcool (uma dose de cachaça ou
vodca e mais duas latas de cerveja) constitui-se um alto de risco de
doença hepática. O alcoolismo é considerado como uma das principais
causas de cirrose hepática (fígado endurecido como pedra) no mundo. Se,
no fim de semana, você gosta de uma caipirinha ou de uma cerveja
estupidamente gelada, beba moderadamente. Com certeza, não vai lhe fazer
mal, desde que o prezado leitor não tenha nenhum problema no fígado.
A
segunda regra passa por sua atividade sexual. O uso de camisinha nas
suas relações vai evitar que você adquira, por exemplo, o vírus da
hepatite B (VHB), agente infeccioso de fácil transmissão sexual. Esse
vírus é incriminado como a principal causa de cirrose hepática em nossa
região. Se você não gosta de usar camisinha ou não dá tempo de usa-la,
aí é outra história. Existe até vacina contra hepatite B e você pode se
vacinar. Não existe vacina, contudo, para a AIDS e outras doenças
sexualmente transmissíveis, tais como: sífilis, esquentamento ou
gonorréia (blenorragia), vesículas dolorosas genitais (herpes genital),
crista de galo (condiloma acuminado), mula (linfogranuloma venéreo).
A
terceira regra está inserida no tratamento e controle de determinadas
doenças que podem provocar problemas no fígado, tais como: obesidade
mórbida, doenças da tireóide, insuficiência cardíaca, enfisema pulmonar,
hepatite crônica B, C e D, diabetes tipo 2 associada a esteato-hepatite
não alcoólica. Cientificamente, observa-se que parte dos pacientes
adultos com diabetes tipo 2 tem um aumento significativo de doenças
hepáticas, incluindo cirrose hepática, quando comparados com a população
geral não-diabética. Pacientes diabéticos têm um risco aumentado em
sete vezes de apresentar endurecimento do tecido do fígado (fibrose).
A
quarta regra, das dez para que o seu fígado seja feliz, baseia-se no
controle do seu peso corpóreo. O que acontece no fígado em conseqüência
do aumento de peso? Deposição contínua de gordura no fígado, podendo
ocasionar processo inflamatório agudo (hepatite) e levar a uma doença
chamada de esteato-hepatite aguda (hepatite aguda por deposição de
gordura). Se não controlada e tratada a obesidade, a esteato-hepatite
aguda torna-se crônica e um percentual bastante significativo dos obesos
desenvolverão uma cirrose hepática ao longo do tempo. Redução do peso
(dieta, cirurgia) e uso de determinadas drogas podem controlar a
referida doença.
A quinta regra para um bom
funcionamento do seu fígado e do seu inimigo pessoal encontra-se no
hábito da boa alimentação. Evite alimentos que contenham gordura animal
(carne vermelha gorda, pele de frango, bacon, lingüiça, queijo amarelo,
manteiga) e frituras. Em decorrência da alta concentração de colesterol
nesses alimentos, o fígado usaria esta superoferta de colesterol para
produzir excessivamente uma substância chamada bile ou bílis (substância
amarelo-esverdeada secretada pelo fígado), que seria eliminada para o
duodeno (primeira porção intestino delgado) e intestino (mistura-se com
os alimentos para ajudar na digestão). Parte da bile seria absorvida
pelo estômago e daí provocaria boca amarga e com gosto de água de lavar
espingarda ou de fel. Em razão da ingestão excessiva de alimentos
gordurosos, ocorreria no sangue um aumento dos triglicérides e
colesterol e, conseqüentemente, deposito de gordura nas células do
fígado (hepatócitos), ocasionando assim a esteatose hepática. Coma
bastante peixe e frango sem pele (grelhado, assado, cozido), frutas e
verduras. Só fazem bem.
A sexta regra está explícita no
erro cultural e costumaz da automedicação. O uso de determinadas drogas
e ervas pode ocasionar ao seu fígado, desde uma simples hepatite aguda
medicamentosa, morte por insuficiência hepática fulminante até cirrose
hepática. Evite tomar remédios sem prescrição médica e ervas indicadas
pelos parentes, comadres e vizinhos. No estado do Pará, existe relato
científico de mortes (hepatite fulminante) pelo uso do chá e cápsulas da
sacaca, aquela que é considerada por alguns como a oitava maravilha do
mundo.
A sétima regra está na retirada eletiva
(cirurgia) das pedras da vesícula (cálculo biliar). As pedras na
vesícula biliar podem comprometer o fígado? Claro que sim. Quando a
vesícula biliar repleta de pedras apresenta processo inflamatório
(colecistite aguda), existe uma tendência de obstruir a passagem de
biles para o intestino. A bile não excretada reflui para o fígado,
torna-se tóxica e vai ocasionar hepatite aguda. As bactérias
responsáveis pela inflamação da vesícula biliar podem ascender para o
fígado e daí podem provocar um quadro infeccioso agudo, geralmente
grave, tendendo a formação de hepatite aguda infecciosa (bacteriana) e
posteriormente de abscessos no fígado. Se não tratado, o paciente poderá
morrer com infecção generalizada.
A oitava regra é bem
atual. Não fume, o cigarro faz muito mal para o fígado. Os resultados
de vários estudos revelam que o hábito de fumar acelera ou agrava uma
doença do fígado pré-existente, principalmente se o fumante for portador
de uma dessas doenças: esteato-hepatite (processo inflamatório no
fígado provocado por deposição de gordura), hepatite crônica e cirrose
hepática pelos vírus das hepatites B e C ou outro qualquer tipo de
hepatite crônica. Pacientes cirróticos fumantes, independentemente da
causa, apresentam um risco muito grande de evolução para câncer primário
de fígado.
A nona regra é ter que fazer transplante
hepático se o seu fígado, de algum familiar ou de algum amigo não está
mais funcionando (cirrose hepática em fase avançada). Porque alguém
precisaria fazer um transplante do fígado? É até simples explicar. É o
tratamento de eleição de qualquer doença do fígado avançada, aguda ou
crônica, não curável com outros tratamentos e que põe a vida do paciente
em perigo ou induz a uma deterioração importante na sua qualidade de
vida. Portanto, nada mais resta do que trocar o fígado doente e
irrecuperável por um novo.
A última e décima regra é a
mais importante de todas. Periodicamente, se você tem mais que 40 anos
de idade, faça um exame clínico geral pelo menos uma vez por ano e assim
o seu médico saberá como está funcionando o seu “precioso fígado”. Se
tudo está bem com o seu fígado, ótimo, mas não o deixe de lado. Ele foi
programado para viver mais de cem anos. Pense e comece também a cuidar
do seu coração e do seu organismo como um todo.Leia neste blog artigo sobre o link entre fígado e coração.
Um comentário:
Brilhante Dr. Jose Carlos
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