Boca amarga: um sintoma proveniente do fígado?

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)


Nas eras remotas da medicina e principalmente durante os séculos XVIII e XIX, a língua, um dos componentes da cavidade oral (boca), era considerada o “barômetro da saúde”, ou seja, o exame clínico começava pela boca. Neste período, o clínico era obrigado a se dirigir ao paciente com a clássica pergunta: “por favor, mostre-me a língua”. Se não fosse feita tal pergunta, a competência do médico era questionada pelos familiares e pacientes. Durante séculos, as observações do estado da língua do paciente tornaram-se tão importante quanto tomar as pulsações do paciente.

Por muito tempo, o sintoma “boca amarga” foi considerado como doença ocasionada por maus fluídos e estava associada aos demônios que habitavam as entranhas dos indivíduos. Na história do cotidiano médico, uma das queixas mais frequentes que o clínico ouvia e ainda ouve até hoje é o relato de boca amarga. Uns dizem que o gosto na boca fica igual a “água de lavar espingarda”, outros relatam o gosto de “cabo de guarda-chuva” e outros chegam a dizer que a boca é tão amarga que lembra “fel de galinha” ou sal amargo de Epsom (laxativo a base de sulfato de magnésio).

Desde que o homem surgiu no Éden, o fígado é considerado o réu da questão e incriminado por todos como o causador do problema. Portanto, seria a boca amarga um problema exclusivo de origem hepática? Sabemos que não e que diversas outras causas são atribuídas a tal queixa, como podemos observar na tabela abaixo:

Principais causas de boca amarga por ordem de importância
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a) Processos digestivos (gastrite, doenças de refluxo gastresofágico);
b) Doenças do fígado com a presença de icterícia (olhos amarelos, pele, mucosas);
c) Depressão (pode ser o primeiro sintoma da depressão);
d) Carência de vitaminas do complexo B;
e) Alergias alimentares;
f) Intoxicação por chumbo (sabor metálico);
g) Intoxicação por mercúrio e ferro;
h) Intoxicação por selênio;
i) Hábito de fumar e mascar tabaco;
k) Abscessos dentários;
l) Inflamações das glândulas salivares;
m) Dentes cariados;
n) Doenças da gengiva;
o) Uso de drogas (anti-inflamatórios, tranquilizantes, antibióticos, antialérgicos, anticonvulsivantes, antiparasitários).
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Como podemos observar, as causas mais importantes da queixa de boca amarga relatada pelo paciente seriam as de origem do aparelho digestivo (esôfago, estômago e fígado). Como explicar tal fenômeno clínico? Não é difícil: basta lembrar que qualquer problema no estômago ocasionado por doenças (refluxo gastresofágico, hérnia hiatal, gastrite, ulcera) ou pela ingestão de produtos que irritam a mucosa gástrica (pimenta, frutas cítricas, frituras, chocolate, cigarro, alho, café, álcool, bebidas gasosas, drogas) vai produzir em abundância um ácido, que é conhecido como “ácido clorídrico”. Se o esôfago não funciona bem, ou seja, não se fecha completamente quando a comida ou líquido chega ao estômago, o ácido com resíduos alimentares reflui para o esôfago e vai provocar, além de boca amarga, azia, língua saburrosa, salivação excessiva, eructações (arrotos) frequentes e outros problemas mais.

Com relação ao fígado, sabe-se que este órgão capta, conjuga e excreta uma substância chamada de bilirrubina (produto final resultante da destruição das células do sangue). Qualquer processo inflamatório dentro do fígado (hepatite viral, uso de drogas hepatotóxicas) ou fora do fígado obstruindo a passagem da bilirrubina (pedra na vesícula ou no colédoco, câncer de pâncreas ou de vesícula biliar, obstrução por lombriga etc.) faz com que bilirrubina não seja excretada com a bile (fluido produzido pelo fígado e armazenado na vesícula biliar) para o intestino e retorne para o sangue. O fígado, dependendo da quantidade de alimentos que você come por dia, chega a produzir até 1 litro por dia deste fluido (extremamente amargo), que é armazenado na vesícula biliar. Quando a bile é impedida de chegar ao intestino, pode alcançar o estômago por refluxo, via duodeno (primeira porção do intestino delgado), ser absorvida e daí provocar irritação gástrica. A bile contida no estômago estimularia a produção de ácido clorídrico, podendo provocar náuseas, vômitos biliosos e boca amarga. Alimentos gordurosos também podem estimular a produção de biles pelo fígado e ocasionar boca amarga.

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