José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)
Nesta foto verifica-se fígado com inúmeros abscessos (setas amarelas) em decorrência da infecção aguda pela salmonella typhi (imagem obtida em sites educacionais na internet)
Nesta foto observa-se inúmeras lesões rosadas (roséolas tificas) na região periumbilical (setas amarelas). O quadro infeccioso agudo provocado pela salmonella typhi no referido paciente, foi extremamente grave (foto pertencente ao arquivo do autor deste blog).
A relação entre a bactéria causadora da febre tifóide (salmonella typhi) e a minha família não é muito amistosa. São duas, as histórias familiares de doença ocasionada pela famigerada bactéria. A primeira, ocorreu no começo dos anos quarenta. Minha tia Zizinha, irmã de minha mãe, morreu prematuramente aos 12 anos de idade em decorrência das complicações (perfuração e hemorragia intestinal) da chamada doença febre tifóide ou tifo. É bom lembrar ao estimado leitor que, no inicio dos anos quarenta, não existiam antibióticos para tratar febre tifóide ou outra qualquer doença provocada por bactérias, tais como: amidalite, sinusite, pneumonia, infecção urinária. O cloranfenicol, antibiótico indicado para o tratamento da febre tifóide só foi descoberto em 1947.
Na segunda história, o editor deste blog foi a vítima. Aos cinco anos de idade, precisamente em 1954, minha babá, de nome Sarah e nativa de Barbados (Caribe), comprou algumas ameixas secas na taberna que ficava na esquina da rua Saldanha Marinho com a Costa Azevedo e me deu para comer. Passados alguns dias, segundo informações da minha mãe quando viva, tive uma bruta febre por mais de oito dias, diarréia e fiquei com os olhos discretamente amarelos (icterícia). Minha doença foi diagnosticada e tratada como febre tifóide pelo grande médico e amigo de meu pai, o saudoso Dr. Jorge Mendes. Felizmente, em 1954 já existia o cloroafenicol importado da Alemanha, cujo nome era Cloromicetina, fabricado pela Bayer. Nunca esqueci o tal remédio, o frasco era maior do que um botijão de gás (exagero da minha parte), o líquido era grosso, gorduroso, amarelo e tinha um gosto horrível, bem pior do que o óleo de fígado de bacalhau ou da mamona. Mas, para a alegria de muitos no passado e para a tristeza de “uns míseros” no presente, fiquei curado e estou aqui escrevendo estas duas histórias familiares.
O estimado leitor deve ter estranhado o quadro clínico que apresentei quando fui acometido de febre tifóide, principalmente quando digo que os meus olhos ficaram amarelos (ictéricos). E aí vem a pergunta clássica: febre tifóide pode dar problemas no fígado (hepatite)? Claro que sim, não resta nenhuma dúvida, mas só lhe explico com maiores detalhes, daqui alguns parágrafos. Antes, preciso informá-lo sobre algumas generalidades da doença.
A febre tifóide prevalece em regiões onde o saneamento básico é inadequado e tem maior incidência (casos novos) nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. No Estado do Amazonas, as sedes dos municípios de Coari, Codajás, Manacapuru e Manaus aparecem como as de maior incidência entre os anos de 2004 e 2005. A bactéria responsável por essa doença (salmonella typhi) se transmite por via fecal-oral (fezes-boca).
A salmonella pode ser encontrada nas seguintes fontes de infecção: águas contaminadas (igarapés, poços, cacimbas, charcos), alimentos vendidos na rua por ambulantes, alimentos industrializados (maionese, sorvete, catchup, margarina, manteiga), carne crua, mariscos, no leite de vaca não esterilizado, queijo coalho (comum em nosso meio), verduras (alface, couve) e muito mais. Na carne congelada e na margarina a salmonella pode viver, de dois meses a três meses, respectivamente. Todavia, o maior problema da disseminação e transmissão da bactéria está exatamente entre os humanos portadores crônicos ou “sãos” da bactéria (sem doença). Tais portadores albergam as salmonelas na vesícula biliar e posteriormente as salmonellas são excretadas pelas fezes no meio ambiente.
É muito comum que cozinheiros(as) ou portadores(as) “sãos” da bactéria contaminem os alimentos durante o processo de preparação e manipulação através das mãos sujas de fezes infectadas pela salmonella. Viajantes de barcos de recreio que singram os rios do estado do Amazonas, freqüentemente se contaminam com a bactéria e apresentam quadro clínico de febre tifóide. Tal fato é muito comum em nossa região. Acreditamos que o problema de transmissão no barco está na água servida ou nos alimentos armazenados impropriamente, como também nos tripulantes da cozinha portadores crônicos da bactéria manipulando os alimentos.
A febre (sempre alta, até 40ºC) é a queixa mais freqüente. Outros sinais e sintomas podem cursar junto com a febre, tais como: face congesta, a língua fica saburrosa (crosta esbranquiçada que recobre a língua), enjôos, o abdome encontra-se bastante doloroso, excepcionalmente nota-se manchas rosadas (roseolas tificas) na pele da barriga (segunda figura acima) e outras localidades. A dor de cabeça é severa, o paciente pode cursar com diarréia (esverdeada com aspecto de pirão de ervilha) ou prisão de ventre. O fígado e o baço crescem. Se não tratada há tempo, a doença se complica e os pacientes podem morrer de hemorragia intestinal por perfuração intestinal, o caso da minha tia Zizinha.
Um número significante de pacientes com febre tifóide, 30 a 40% apresentam comprometimento do fígado, ocasionando um tipo de hepatite, chamada de hepatite tífica. Além dos sinais e sintomas do quadro clínico da febre tifóide, os pacientes se queixam de muita dor ao nível da localização do fígado (7ª. a 9ª. costela direita), os olhos ficam amarelos (icterícia), a urina torna-se escura (colúria) e em alguns casos, as fezes ficam brancas (acolia). Ao examinarmos os pacientes, os olhos e a pele encontram-se amarelados, o fígado (hepatomegalia) e baço (esplenomegalia) aumentados de volume. Os exames bioquímicos estão alterados, principalmente as enzimas hepáticas (TGO ou AST, TGP ou ALT), chegando a níveis de 2000 a 3000 unidades, como acontece com as hepatites agudas de origem viral.
O que diferencia clinicamente a hepatite aguda tífica da hepatite aguda viral é o prolongamento da febre na hepatite tífica por mais de cinco dias. Por exemplo, na hepatite aguda ocasionada pelo vírus A, a febre não dura mais que cinco dias. Isolada a bactéria salmonella typhi do sangue ou das fezes é indicado o tratamento com antibióticos, com cura em 100% dos pacientes. A presença da salmonella no fígado pode ocasionar múltiplos abscessos no fígado.
Um comentário:
Parabens pelo Blog. Estou com um paciente que foi pescar no Amazonas e voltou com febre e dor abdominal. Seu blog me ajudou.
obrigado.
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