O fígado e a doença dos pezinhos

José Carlos Ferraz da Fonseca

Especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


Em 2007, tive contato clínico pela primeira vez com dois pacientes cosanguíneos, do sexo masculino, portadores da Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF) ou doença dos pezinhos ou, ainda, doença de Andrade. Confesso que fiquei tenso durante a consulta, pois meus conhecimentos sobre a enfermidade eram apenas teóricos.

Tratava-se de dois irmãos, com pais originários do norte de Portugal. O paciente mais velho apresentava problemas neurológicos graves e o mais jovem, sinais iniciais da doença. O episódio mais triste da história da família foi o relato da morte da mãe, mais ou menos 10 anos antes, provavelmente, em decorrência da referida doença.

O motivo da consulta com os dois irmãos era o encaminhamento futuro para transplante hepático. Quanto à doença dos pezinhos, infelizmente, o papel do hepatologista clínico é apenas este, ou seja, o de encaminhamento.

É importante frisar que o fígado é apenas um dos órgãos responsáveis pela produção de uma proteína plasmática anômala, a transtirretina (TTR met 30), que causa a moléstia.

A doença dos pezinhos foi descrita pela primeira vez pelo notório neurologista português Dr. Mário Corino da Costa Andrade, em 1952. A enfermidade é conhecida também como a “Doença de Andrade”. Ao publicar sua descoberta, o cientista revelou as principais características da doença: comprometimento de núcleos familiares de origem portuguesa; caráter hereditário e altamente letal; paresias (perda parcial dos movimentos voluntários ou automático dos membros), particularmente das extremidades inferiores; diminuição precoce da sensibilidade à temperatura e à dor, começando e predominando nas extremidades inferiores; perturbações gastrointestinais; e perturbações sexuais (disfunção erétil) e dos esfíncteres.

A doença tem início, insidiosamente, quando o paciente tem entre 20 e 40 anos e conduz a um desfecho fatal após 10 a 15 anos de sofrimento.

Em países de colonização portuguesa, há relatos de milhares de casos da doença dos pezinhos. Nos Estados Unidos, país com percentuais de alta imigração portuguesa, é comum também o aparecimento da doença entre americanos nascidos de pais portugueses.

Qual seria o mecanismo de manifestação da doença? Normalmente, o fígado produz uma proteína denominada de transtirretina (TTR). Essa proteína é responsável pelo transporte, no plasma e no líquido cefalorraquidiano, da tiroxina (hormônio tireoidiano), dos lipídios e do retinol (vitamina A). Quando existe mutação no gene da proteína TTR, esta se torna instável e é responsável pelo depósito anômalo de uma substância fibrilar denominada de amiloide, sobretudo nos nervos. É o deposito da substância amiloide no tecido nervoso que ocasiona as formas graves da doença, como descreve o descobridor da Polineuropatia Amiloidótica Familiar. A substância amiloide impregna vários órgãos, principalmente os nervos periféricos, rins, coração, estômago e intestino delgado.

No estágio final da doença, o paciente se encontra deprimido, acamado ou numa cadeira de rodas e com escaras disseminadas. Apresenta ainda, de uma forma geral, fraqueza muscular, atrofias dos membros inferiores e superiores. Na maioria dos casos, caminha inexoravelmente para a morte por caquexia e/ou infecções intercorrentes.

Estudos experimentais da equipe da professora Maria João Saraiva, do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto, constataram que a administração, em ratos transgênicos, de um ácido biliar produzido naturalmente no organismo é capaz de reduzir em 75% a formação de fibras amiloides. É bom lembrar, novamente, que a deposição dessas fibras (amiloide) nos nervos periféricos é a origem da doença, que começa a se revelar pela perda da sensibilidade térmica e dolorosa nos membros inferiores, principalmente nos pés, daí o nome doença dos pezinhos.

Novas drogas estão sendo testadas no tratamento da enfermidade, todavia, o transplante de fígado – que permite a substituição do principal órgão produtor da proteína anômala – tem sido a forma mais usual de atenuação dos sintomas durante algum tempo. Porém, não elimina os danos já existentes nem impede o aparecimento de outros danos após o transplante.

Um comentário:

Anônimo disse...

Senhor Doutor

Seria gratificante que os portugueses lessem este artigo. Seu blog é a biblía das doenças do fígado.
Um admirador de Gaia