O fígado e as doenças ósseas
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)
O
fígado é uma maquina e um laboratório que funciona ininterruptamente.
Ele tem papel central importantíssimo no controle do meio interno do
nosso organismo. Por isso, doenças hepáticas crônicas afetam outros
órgãos e sistemas (coração, pulmão, encéfalo, rim, tecido ósseo)
provocando as mais diversas doenças, como insuficiência cardíaca
(coração de boi), falta de ar por comprometimento do pulmão (dispnéia),
confusão mental (encefalopatia hepática crônica), insuficiência renal
crônica (os rins deixam de funcionar), doenças ósseas e outras dezenas
mais de doenças.
Quando o fígado está sadio ele
funciona como um depósito, armazenando vitaminas do complexo B, vitamina
A, vitamina D, vitamina K, vitamina E, água, glicogênio, ferro e
cobre que são adquiridos através do bolo alimentar. Das vitaminas que o
fígado capta dos alimentos e armazena, a vitamina D seria a responsável
pela mineralização óssea.
Quando o fígado fica doente,
observa-se uma deficiência na produção de vitamina D, gerando assim uma
série de problemas no organismo, inclusive a não fixação do cálcio nos
ossos. Lembre-se, o óleo de fígado de bacalhau (figura acima) é
riquíssima em vitamina D e antigamente, a mãe gostava de botar goela
adentro algumas generosas colheres do tal óleo, junto com o cálcio
vitaminado (Calcigenol, Kalyamon B12). O remédio "oleo de fígado de
bacalhau" existe até hoje.
Quem foi criança nos anos
cinquenta e sessenta, como eu e a minha querida prima Graça, não se
esquece. Eram os remédios dados para fortalecer os ossos da criançada,
apesar dos protestos mudos ocasionados pelo gosto insuportável do óleo
de fígado de bacalhau.
Subir em árvores era o meu passa
tempo favorito quando morei na Vila Municipal, hoje Adrianópolis
(bairro da cidade de Manaus). Toda vez que a minha inventava de me dar o
tal óleo, eu subia na jaqueira lá de casa para não tomar o maldito
óleo. Subir na jaqueira eu sabia, mas confesso, descer sozinho, nunca.
Anoitecia e quando meu pai chegava do trabalho, colocava uma escada, o
primogênito descia e não tinha jeito, a desgraça vinha em forma do
maldito óleo de fígado de bacalhau. Mesmo debaixo da jaqueira, minha mãe
pacientemente dizia: abra a boca, tampe o nariz, feche os olhos, engula
tudo e não cuspa. Com a mamona era a mesma coisa e até hoje me arrepio
do gosto de cano enferrujado pós-ressaca e do cheiro indecifrável
sufocante. No outro dia já tinha esquecido tudo. Apesar dos traumas
oleaginosos, nunca foi necessário fazer análise, graças à psicologia
espontânea dos meus pais.
Quais as doenças crônicas do
fígado capazes de provocar problemas nos ossos? São várias e as
principais podemos enumerar por importância. A primeira seria a cirrose
biliar primária (destruição do sistema biliar contido dentro do fígado),
assim caracterizada: doença crônica de caráter progressivo, de causa
aparentemente desconhecida, 95% dos pacientes são do sexo feminino, a
maioria das pacientes se queixam de coceira (prurido) em todo corpo,
pele e olhos amarelo (icterícia) e cansaço fácil (fatiga).
Nos
pacientes com cirrose biliar primária, a perda progressiva da massa
óssea (osteoporose) é a doença mais frequentemente observada,
comprometendo as vértebras e os quadris, sendo na maioria dos casos
assintomática. Todavia, pode manifestar-se por dor óssea difusa,
colapso das vértebras e fraturas múltiplas. Em alguns casos, observa-se o
amolecimento dos ossos (osteomalácia) por deficiência da vitamina D e
cálcio. Ao contrário da osteomalácia, a osteoporose observada em 32% dos
pacientes com cirrose biliar primária não está relacionada com a
deficiência da vitamina D.
Até o presente momento,
particularmente na cirrose biliar primária, não sabemos quais os fatores
que levam a redução da massa óssea (osteoporose). Para evitar problemas
ósseos nos pacientes com cirrose biliar, geralmente os pacientes
recebem suplementos de vitamina A, D, K e cálcio.
A
segunda doença seria a colangite esclerosante primária (fenômenos
inflamatórios do sistema biliar, tanto dentro como fora do fígado). A
bile produzida no fígado não consegue ser excretada para o intestino e
volta quase toda para o sangue. Esta doença cursa cronicamente e acomete
principalmente pacientes do sexo masculino. A maioria dos meus
pacientes portadores desta doença pertencem ou pertenciam ao sexo
masculino.O problema médico é quase parecido do que acontece com
pacientes portadores de cirrose biliar e os sintomas são parecidos. O
cansaço progressivo (astenia), a coceira (prurido), a pele e olhos
amarelos (icterícia) são as queixas mais frequentes. O amolecimento dos
ossos (osteomalácia) por deficiência da vitamina D e cálcio é bastante
observado entre esses pacientes.
Outras doenças como a
hepatite crônica cursando com alto grau de icterícia, cirrose hepática e
obstrução crônica das vias biliares (pedra na vesícula, tumores
cancerígenos no pâncreas e na vesícula biliar) podem provocar falência
do fígado. Se ocorrer tal falência, teríamos uma falta de absorção da
vitamina D e problemas na fixação do cálcio nos ossos.
É
bom repetir e lembrar: a deficiência das vitaminas A,D, E, K e cálcio
comumente observado em pacientes com doença hepática crônica, favorece a
instalação de doenças ósseas que podem levar a fraturas graves, seja
por amolecimento dos ossos (osteomalácia) ou redução da massa óssea
(osteoporose).
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