Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia).
Na “Santa ceia”, Jesus Cristo ofereceu aos seus apóstolos somente “pão e vinho”. Uma ceia muito espartana, tenho que concordar. Mas é claro que nas festas do ano novo a maioria dos leitores não repetirá a dieta à base de pão que Jesus e os apóstolos fizeram naquele momento de significado tão religioso. O pão será somente um complemento e quem gosta do líquido santo e precioso só beberá vinho. Tive um paciente com cirrose hepática alcoólica que gostava de dizer que só gostava de beber vinho tinto. Afirmava com toda convicção que tal bebida não fazia mal porque era igual ao sangue de Cristo: encarnado (vermelho), puro e milagroso. Escrevendo como médico e não filosofando, é difícil entender certas projeções dos viciados no álcool.
Lembro de uma das novelas de Dias Gomes (dramaturgo
brasileiro), em que uma das personagens chamava-se Dona Redonda. Alguém lembra?
Pois é, ela explodiu de tanto comer, não sei se foi na passagem de ano, mas que
ela explodiu, explodiu. Nas consultas médicas de dezembro, é comum que os meus
pacientes no final tenham sempre uma pergunta arquitetada durante o dia e na
ponta da língua: “Doutor José Carlos, posso comer e beber no Réveillon?” Com
certeza, eles sabem o que faz mal, pois tenho como norma clínica explicar aos
meus pacientes o que é bom e o que é ruim para a sua saúde. Fico na berlinda se
respondo se pode ou não, pois adoro os quitutes da passagem de ano, menos
qualquer coisa que contenha álcool. Infelizmente, as palavras “pena” ou
“coitadinho” não existem no dicionário da minha especialidade. A qualidade de
vida dos pacientes com qualquer doença do fígado depende muito mais dos
próprios pacientes do que do médico que o assiste.
O que
realmente faz mal para o fígado? Muito pouca coisa, se você não tem nenhuma
doença hepática ou predisposição a tê-la. Todavia, se você tiver alguma doença
no fígado ou predisposição e encontra-se em fase de tratamento, quase tudo faz
mal, até um doce suspiro comido na hora errada.
Começamos pelo excesso de bebidas alcoólicas. O
dano ao fígado causado pelo álcool está estritamente relacionado à quantidade,
freqüência e duração do tempo de consumo de álcool. Se o leitor deste
artigo, ou alguém bem próximo, beber diariamente 60-80 gramas de álcool (duas
doses de cachaça ou uma de conhaque e mais duas latas de cerveja), por mais de
5 a 12 anos, provavelmente, terá grandes possibilidades, desde que seja
suscetível, de desenvolver uma cirrose hepática alcoólica. Contudo, em muitos
alcoólatras, a cirrose hepática nunca ocorre, mesmo após décadas de ingestão de
álcool excessiva. Pronto: se você não tem nenhuma doença hepática, beba
moderadamente no Réveillon e nada acontecerá ao seu fígado. Um outro aviso:
cuidado, o álcool não faz mal só para o fígado. A ingestão abusiva pode fazer com
que o machão extravase em público o seu lado feminino. Há mais problemas: tanto
o homem como a mulher podem sofrer de estômago (gastrite, úlcera), de perda da
potência sexual (homem) e da libido (homem, mulher), do pâncreas, do coração e
dos nervos. Muito acabam perdendo o juízo, ocasionando os mais graves delitos,
seja no trânsito ou em sua própria casa. Os crimes passionais são na maioria
das vezes ocasionados pelo consumo exagerado de álcool.
Com
relação aos quitutes do Réveillon, o que realmente faria mal para uma pessoa
com o fígado sabidamente sadio? Sabemos que todos os sintomas apresentados pelo
paciente após tal ceia estariam relacionados com o estômago, vesícula
biliar e o intestino, e não com o fígado. Neste caso, o fígado do “rei ou
rainha da gordura e do álcool” teria que trabalhar dez vezes mais para
processar e eliminar os elementos nocivos contidos na ceia do Réveillon
(gorduras, toxinas químicas, sal), nos petiscos (gorduras, substâncias
cancerígenas, conservantes, toxinas químicas, sal) e bebida alcoólica (etanol).
Em decorrência da alta concentração de colesterol nos petiscos e ceia, o fígado
usaria esta superoferta de colesterol para produzir excessivamente uma
substância chamada bile ou bílis (substância amarelo-esverdeada secretada pelo
fígado), que seria eliminada para o duodeno (primeira porção intestino delgado)
e intestino (mistura-se com os alimentos para ajudar na digestão). Parte da
bile seria absorvida pelo estômago e daí provocaria boca amarga e com gosto de
água de lavar espingarda ou de fel. Quem ainda não foi personagem desta
história, que atire a primeira colherada de maionese.
Se você
tem pedra na vesícula, aí a história é diferente. Depois dos comes e bebes do
Réveillon, lá pelo fim da madrugada começa a sessão de gases incontroláveis e
inconvenientes, boca amarga, cólica, o teto roda, existe uma sensação de que a
barriga vai explodir (distensão abdominal), o guloso ou gulosa chama os filhos
para se despedir e diz que desta não escapa. No dia seguinte, logo pela manhã o
paciente refere intolerância a alimentos e diz com toda moral possível que
nunca mais vai repetir o que fez ontem. Geralmente o almoço do dia primeiro é o
que sobrou da véspera. E aí? Conheço muita gente que adora pegar os restos do
peru ou porco (ossos do barão) que sobrou do jantar da véspera, colocar jambu,
tucupi e oferecer no almoço o novo prato: “peru ou porco no tucupi”. Existem
pessoas que afirmam que é um verdadeiro manjar dos deuses, ainda não ousei
provar. O tucupi é um dos produtos derivados da mandioca mais indigesto e
erosivo da camada que envolve o estômago (mucosa) que eu já conheci na minha
vida. Quer saber se você tem gastrite ou úlcera? Tome um gole de tucupi e a dor
é imediata.
Um conselho aos que tenham alguma doença no fígado:
continuem evitando excessos na comida e não se esqueçam que não podem beber
quaisquer bebidas alcoólicas. Finalizando este artigo, sugiro a todos que na
passagem do ano evitem comer e beber álcool em excesso, já que não existe uma
droga capaz de proteger o seu fígado contra as nossas extravagâncias. Deixe que
o seu fígado cumpra normalmente sua função e tenha uma melhor qualidade de vida
em 2015. Um feliz ano novo com saúde. É o que desejo do fundo do meu fígado a
todos meus leitores.
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