Natal e Réveillon: muito cuidado com o seu fígado

José Carlos Ferraz da Fonseca 
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia).






Na “Santa ceia”, Jesus Cristo ofereceu aos seus apóstolos somente “pão e vinho”. Uma ceia muito espartana, tenho que concordar. Mas é claro que nas festas do ano novo a maioria dos leitores não repetirá a dieta à base de pão que Jesus e os apóstolos fizeram naquele momento de significado tão religioso. O pão será somente um complemento e quem gosta do líquido santo e precioso só beberá vinho. Tive um paciente com cirrose hepática alcoólica que gostava de dizer que só gostava de beber vinho tinto. Afirmava com toda convicção que tal bebida não fazia mal porque era igual ao sangue de Cristo: encarnado (vermelho), puro e milagroso. Escrevendo como médico e não filosofando, é difícil entender certas projeções dos viciados no álcool. 

Lembro de uma das novelas de Dias Gomes (dramaturgo brasileiro), em que uma das personagens chamava-se Dona Redonda. Alguém lembra? Pois é, ela explodiu de tanto comer, não sei se foi na passagem de ano, mas que ela explodiu, explodiu. Nas consultas médicas de dezembro, é comum que os meus pacientes no final tenham sempre uma pergunta arquitetada durante o dia e na ponta da língua: “Doutor José Carlos, posso comer e beber no Réveillon?” Com certeza, eles sabem o que faz mal, pois tenho como norma clínica explicar aos meus pacientes o que é bom e o que é ruim para a sua saúde. Fico na berlinda se respondo se pode ou não, pois adoro os quitutes da passagem de ano, menos qualquer coisa que contenha álcool. Infelizmente, as palavras “pena” ou “coitadinho” não existem no dicionário da minha especialidade. A qualidade de vida dos pacientes com qualquer doença do fígado depende muito mais dos próprios pacientes do que do médico que o assiste.

O que realmente faz mal para o fígado? Muito pouca coisa, se você não tem nenhuma doença hepática ou predisposição a tê-la. Todavia, se você tiver alguma doença no fígado ou predisposição e encontra-se em fase de tratamento, quase tudo faz mal, até um doce suspiro comido na hora errada. 

Começamos pelo excesso de bebidas alcoólicas. O dano ao fígado causado pelo álcool está estritamente relacionado à quantidade, freqüência e duração do tempo de consumo de álcool.  Se o leitor deste artigo, ou alguém bem próximo, beber diariamente 60-80 gramas de álcool (duas doses de cachaça ou uma de conhaque e mais duas latas de cerveja), por mais de 5 a 12 anos, provavelmente, terá grandes possibilidades, desde que seja suscetível, de desenvolver uma cirrose hepática alcoólica. Contudo, em muitos alcoólatras, a cirrose hepática nunca ocorre, mesmo após décadas de ingestão de álcool excessiva. Pronto: se você não tem nenhuma doença hepática, beba moderadamente no Réveillon e nada acontecerá ao seu fígado. Um outro aviso: cuidado, o álcool não faz mal só para o fígado. A ingestão abusiva pode fazer com que o machão extravase em público o seu lado feminino. Há mais problemas: tanto o homem como a mulher podem sofrer de estômago (gastrite, úlcera), de perda da potência sexual (homem) e da libido (homem, mulher), do pâncreas, do coração e dos nervos. Muito acabam perdendo o juízo, ocasionando os mais graves delitos, seja no trânsito ou em sua própria casa. Os crimes passionais são na maioria das vezes ocasionados pelo consumo exagerado de álcool.

Com relação aos quitutes do Réveillon, o que realmente faria mal para uma pessoa com o fígado sabidamente sadio? Sabemos que todos os sintomas apresentados pelo paciente após tal ceia  estariam relacionados com o estômago, vesícula biliar e o intestino, e não com o fígado. Neste caso, o fígado do “rei  ou rainha da gordura e do álcool” teria que trabalhar dez vezes mais para processar e eliminar os elementos nocivos contidos na ceia do Réveillon (gorduras, toxinas químicas, sal), nos petiscos (gorduras, substâncias cancerígenas, conservantes, toxinas químicas, sal) e bebida alcoólica (etanol). Em decorrência da alta concentração de colesterol nos petiscos e ceia, o fígado usaria esta superoferta de colesterol para produzir excessivamente uma substância chamada bile ou bílis (substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado), que seria eliminada para o duodeno (primeira porção intestino delgado) e intestino (mistura-se com os alimentos para ajudar na digestão). Parte da bile seria absorvida pelo estômago e daí provocaria boca amarga e com gosto de água de lavar espingarda ou de fel. Quem ainda não foi personagem desta história, que atire a primeira colherada de maionese.

Se você tem pedra na vesícula, aí a história é diferente. Depois dos comes e bebes do Réveillon, lá pelo fim da madrugada começa a sessão de gases incontroláveis e inconvenientes, boca amarga, cólica, o teto roda, existe uma sensação de que a barriga vai explodir (distensão abdominal), o guloso ou gulosa chama os filhos para se despedir e diz que desta não escapa. No dia seguinte, logo pela manhã o paciente refere intolerância a alimentos e diz com toda moral possível que nunca mais vai repetir o que fez ontem. Geralmente o almoço do dia primeiro é o que sobrou da véspera. E aí? Conheço muita gente que adora pegar os restos do peru ou porco (ossos do barão) que sobrou do jantar da véspera, colocar jambu, tucupi e oferecer no almoço o novo prato: “peru ou porco no tucupi”. Existem pessoas que afirmam que é um verdadeiro manjar dos deuses, ainda não ousei provar.  O tucupi é um dos produtos derivados da mandioca mais indigesto e erosivo da camada que envolve o estômago (mucosa) que eu já conheci na minha vida. Quer saber se você tem gastrite ou úlcera? Tome um gole de tucupi e a dor é imediata.

Um conselho aos que tenham alguma doença no fígado: continuem evitando excessos na comida e não se esqueçam que não podem beber quaisquer bebidas alcoólicas. Finalizando este artigo, sugiro a todos que na passagem do ano evitem comer e beber álcool em excesso, já que não existe uma droga capaz de proteger o seu fígado contra as nossas extravagâncias. Deixe que o seu fígado cumpra normalmente sua função e tenha uma melhor qualidade de vida em 2015. Um feliz ano novo com saúde. É o que desejo do fundo do meu fígado a todos meus leitores.

       






O fígado e o uso da maconha

José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico Especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)


 


A maconha (Cannabis sativa) é cultuada em todo o mundo, apesar do uso ser considerado ilegal em vários países, inclusive no Brasil. Quando fumada, é usada como droga relaxante ou para fins de provocar efeitos eufóricos. O emprego medicinal da maconha é aprovado em alguns países do mundo, mas discute-se cientificamente se seus efeitos realmente beneficiam ou viciam seus usuários.
Deleitada, na maioria dos casos, por adolescentes, jovens e adultos jovens, a maconha é também utilizada pelos mais velhos. Vejam este exemplo: tenho um paciente, com mais de 75 anos, usuário costumeiro de um “baseadinho” por dia. Suas filhas vivem em pânico, pois ele tem, na laje de sua casa, um pé de maconha. Um só pezinho para uso próprio, confessa. Agora, se o meu distinto paciente fuma seu cigarrinho de maconha há mais de 60 anos, que posso fazer como médico? Apenas expliquei os males da referida droga ao usuário, não só para o seu fígado, como também para o seu pulmão. Contudo o mesmo foi enfático, ao final da consulta, dizendo: "não posso largar uma das boas coisas da vida, certo doutor? Veja só meu dilema, carne vermelha não como mais, sal e sexo só quando sonho, entendeu meu doutor?". Depois dessa famigerada e consistente resposta, acabei fazendo-me de desentendido, apesar dos olhares perplexos das duas filhas.
Fumar um “baseado” faz mal ao fígado? É a pergunta que mais recebo no meu blog. Com certeza, posso afirmar que sim, mas não tanto como a cocaína. O que se sabe cientificamente é que um dos princípios ativos liberados pela maconha, denominado de “canabinoide”, é dividido em dois receptores, “canabinoides receptores 1 e 2”. O canabinoide receptor 1 é o grande vilão da história natural dos usuários da maconha, pois, geralmente, compromete o  fígado. Se o uso é associado ao consumo de álcool, essa substância (canabinoide) torna-se mais agressiva e é capaz de levar a problemas gravíssimos no fígado.
Diversos trabalhos publicados em revistas médicas e científicas relatam os efeitos nocivos do uso diário da maconha em forma de cigarro, principalmente entre pacientes com doença hepática preexistente, citando como exemplos: hepatite crônica ocasionada pelo vírus da hepatite B (VHB) ou C (VHC); esteatose hepática; esteato-hepatite não alcoólica, cirrose hepática alcoólica, cirrose hepática sem causa definida.
O que acontece entre esses pacientes (usuários de maconha) com hepatopatia preexistente? A substância liberada pelo uso da maconha, no caso a “canabinoide”, é capaz de atuar como “fator de risco” na progressão mais rápida para fibrose (endurecimento) do fígado, no curso dessa doença (caminho para a cirrose), principalmente, entre pacientes com hepatite crônica C.
Baseados nos estudos supradescritos, podemos concluir que todos os pacientes com doença hepática preexistente devem reduzir ou se abster totalmente do uso da maconha. Não devemos esquecer, também, que o uso do álcool, associado ao ato de fumar maconha, é muito mais agressivo ao fígado doente ou até sadio. Portanto tudo depende do seu gosto ou de sua opção ao vício, ou seja, fácil de entrar e difícil de sair!

Por favor, senhores usuários da maconha ou simpatizantes, sempre me julguem pelas minhas perguntas do tipo: “fumar um baseado faz mal para o fígado?”. E nunca pelas minhas respostas: faz e muito...
O fígado e as doenças ósseas

José Carlos Ferraz da Fonseca
                                           
Médico especialista em Doenças do Fígado (Hepatologia)





O fígado é uma maquina e um laboratório que funciona ininterruptamente. Ele tem papel central importantíssimo no controle do meio interno do nosso organismo. Por isso, doenças hepáticas crônicas afetam outros órgãos e sistemas (coração, pulmão, encéfalo, rim, tecido ósseo) provocando as mais diversas doenças, como insuficiência cardíaca (coração de boi), falta de ar por comprometimento do pulmão (dispnéia), confusão mental (encefalopatia hepática crônica), insuficiência renal crônica (os rins deixam de funcionar), doenças ósseas e outras dezenas mais de doenças.

Quando o fígado está sadio ele funciona como um depósito, armazenando vitaminas do complexo B, vitamina A, vitamina D, vitamina K, vitamina E, água, glicogênio, ferro e cobre que são adquiridos através do bolo alimentar. Das vitaminas que o fígado capta dos alimentos e armazena, a vitamina D seria a responsável pela mineralização óssea.

Quando o fígado fica doente, observa-se uma deficiência na produção de vitamina D, gerando assim uma série de problemas no organismo, inclusive a não fixação do cálcio nos ossos. Lembre-se, o óleo de fígado de bacalhau (figura acima) é riquíssima em vitamina D e antigamente, a mãe gostava de botar goela adentro algumas generosas colheres do tal óleo, junto com o cálcio vitaminado (Calcigenol, Kalyamon B12). O remédio "oleo de fígado de bacalhau" existe até hoje.

Quem foi criança nos anos cinquenta e sessenta, como eu e a minha querida prima Graça, não se esquece. Eram os remédios dados para fortalecer os ossos da criançada, apesar dos protestos mudos ocasionados pelo gosto insuportável do óleo de fígado de bacalhau.

Subir em árvores era o meu passa tempo favorito quando morei na Vila Municipal, hoje Adrianópolis (bairro da cidade de Manaus). Toda vez que a minha inventava de me dar o tal óleo, eu subia na jaqueira lá de casa para não tomar o maldito óleo. Subir na jaqueira eu sabia, mas confesso, descer sozinho, nunca. Anoitecia e quando meu pai chegava do trabalho, colocava uma escada, o primogênito descia e não tinha jeito, a desgraça vinha em forma do maldito óleo de fígado de bacalhau. Mesmo debaixo da jaqueira, minha mãe pacientemente dizia: abra a boca, tampe o nariz, feche os olhos, engula tudo e não cuspa. Com a mamona era a mesma coisa e até hoje me arrepio do gosto de cano enferrujado pós-ressaca e do cheiro indecifrável sufocante. No outro dia já tinha esquecido tudo. Apesar dos traumas oleaginosos, nunca foi necessário fazer análise, graças à psicologia espontânea dos meus pais.

Quais as doenças crônicas do fígado capazes de provocar problemas nos ossos? São várias e as principais podemos enumerar por importância. A primeira seria a cirrose biliar primária (destruição do sistema biliar contido dentro do fígado), assim caracterizada: doença crônica de caráter progressivo, de causa aparentemente desconhecida, 95% dos pacientes são do sexo feminino, a maioria das pacientes se queixam de coceira (prurido) em todo corpo, pele e olhos amarelo (icterícia) e cansaço fácil (fatiga).

Nos pacientes com cirrose biliar primária, a perda progressiva da massa óssea (osteoporose) é a doença mais frequentemente observada, comprometendo as vértebras e os quadris, sendo na maioria dos casos assintomática. Todavia, pode manifestar-se por dor óssea difusa, colapso das vértebras e fraturas múltiplas. Em alguns casos, observa-se o amolecimento dos ossos (osteomalácia) por deficiência da vitamina D e cálcio. Ao contrário da osteomalácia, a osteoporose observada em 32% dos pacientes com cirrose biliar primária não está relacionada com a deficiência da vitamina D.

Até o presente momento, particularmente na cirrose biliar primária, não sabemos quais os fatores que levam a redução da massa óssea (osteoporose). Para evitar problemas ósseos nos pacientes com cirrose biliar, geralmente os pacientes recebem suplementos de vitamina A, D, K e cálcio.

A segunda doença seria a colangite esclerosante primária (fenômenos inflamatórios do sistema biliar, tanto dentro como fora do fígado). A bile produzida no fígado não consegue ser excretada para o intestino e volta quase toda para o sangue. Esta doença cursa cronicamente e acomete principalmente pacientes do sexo masculino. A maioria dos meus pacientes portadores desta doença pertencem ou pertenciam ao sexo masculino.O problema médico é quase parecido do que acontece com pacientes portadores de cirrose biliar e os sintomas são parecidos. O cansaço progressivo (astenia), a coceira (prurido), a pele e olhos amarelos (icterícia) são as queixas mais frequentes. O amolecimento dos ossos (osteomalácia) por deficiência da vitamina D e cálcio é bastante observado entre esses pacientes.

Outras doenças como a hepatite crônica cursando com alto grau de icterícia, cirrose hepática e obstrução crônica das vias biliares (pedra na vesícula, tumores cancerígenos no pâncreas e na vesícula biliar) podem provocar falência do fígado. Se ocorrer tal falência, teríamos uma falta de absorção da vitamina D e problemas na fixação do cálcio nos ossos.

É bom repetir e lembrar: a deficiência das vitaminas A,D, E, K e cálcio comumente observado em pacientes com doença hepática crônica, favorece a instalação de doenças ósseas que podem levar a fraturas graves, seja por amolecimento dos ossos (osteomalácia) ou redução da massa óssea (osteoporose).

O fígado e a deficiência de vitamina D

José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


Quando funciona a contento, o fígado tem a capacidade de sintetizar todas as vitaminas que o organismo recebe, seja através dos alimentos que consumimos, dos complexos vitamínicos que, algumas vezes, teimamos em ingerir em grandes quantidades ou pela exposição da pele ao sol (conversão fotoquímica para previtamina D3).

Sabemos que todas as vitaminas são necessárias ao nosso organismo para que possamos viver com saúde e sem problemas, citando, como exemplo, as vitaminas A, B, C, D, E e K. Destas, a vitamina D é muito importante, pois, em conjunto com o hormônio da paratireoide, mantém a concentração de cálcio e fosfato no organismo, favorecendo a estrutura dos ossos. Existem dois tipos de vitamina D: a vitamina D2 e D3. As principais fontes da vitamina D são: óleo de peixe, contido no salmão, sardinhas do mar e ovas de peixe; margarina; manteiga; leite; creme de leite; cogumelos; cereais, ingeridos no café da manhã. Além disso, a exposição ao sol faz com que o organismo produza vitamina D.

Nos últimos anos, diversos trabalhos científicos revelam que a deficiência da vitamina D, em pacientes com doença hepática crônica, pode contribuir para as formas mais graves e progressivas da doença, inclusive com evolução desfavorável para cirrose hepática.

 O déficit de vitamina D, associado à deficiência do cálcio no organismo, pode estar relacionado a várias doenças, e a mais importante delas é a osteodistrofia hepática, cujo conceito científico consiste em complicação tardia frequente nas doenças hepáticas crônicas, em que os pacientes, comumente, apresentam diminuição da densidade óssea,  caracterizada principalmente por osteoporose (massa óssea baixa) e fraturas ósseas espontâneas.

Estudos publicados nos Estados Unidos (ano 2010) revelam dados preocupantes relacionados à prevalência da deficiência de vitamina D em pacientes com doença hepática crônica. Nesse estudo americano, dos 109 pacientes investigados, 92,5% apresentavam vários graus de deficiência de vitamina D no sangue. Foi observado, ainda, que o grupo de pacientes portadores de cirrose hepática apresentava índices maiores de deficiência do que o observado entre pacientes não cirróticos (29,5% versus 14,15%). Outro dado relevante a ser destacado dessa pesquisa foi que, entre as mulheres afro-americanas, o índice de deficiência da vitamina D teve maior prevalência.

Entre pacientes com hepatite crônica ou cirrose hepática pelo vírus da hepatite C (VHC), os níveis do déficit de vitamina D no sangue são gritantes. Na minha experiência, de 154 casos analisados (dados não publicados), 62,7% apresentavam-se com déficit acentuado dessa vitamina, 28,4% com déficit moderado, 6,4% leve e, apenas, 2,5% com níveis normais de vitamina D. Os resultados encontrados na minha casuística não se diferenciam de outros estudos publicados. Entre pacientes de origem americana com cirrose pelo VHC, foi observado que: 30,2% tinham déficit acentuado, 48,8% déficit moderado e 16,3% apresentavam leve déficit de vitamina D.

Em pacientes com doença hepática crônica pelo VHC e que apresentam déficit de vitamina D, é observado um maior comprometimento hepático, caracterizado por alto grau de necrose (destruição do tecido hepático) e exacerbação da progressão para fibrose hepática. A vitamina D, no organismo, desempenha várias ações, mas a mais importante é a ação anti-inflamatória que exerce. A simples reposição terapêutica da vitamina D entre estes pacientes, por um período nunca inferior a seis meses, ajuda a melhorar a função hepática. Portanto recomenda-se aos pacientes portadores de qualquer doença hepática crônica (hepatite crônica autoimune, esteato-hepatite não alcoólica, cirrose hepática, cirrose biliar, colangite esclerosante e colestase crônica) a dosagem no sangue da vitamina D. Se o paciente apresentar queda dos níveis sanguíneos de vitamina D, o médico assistente deve repor esta vitamina imediatamente. A simples reposição da vitamina D, por via oral, melhora a qualidade de vida entre estes pacientes.

Estudos atuais sugerem que as células cancerígenas produzidas por determinados tumores, principalmente o carcinoma hepático, são capazes de inibir os efeitos da vitamina D em nosso organismo. Assim, a vitamina D tem sido indicada no tratamento coadjuvante dos tumores cancerígenos de origem hepática. A partir de estudos experimentais, sabe-se que a vitamina D3 é capaz de inibir a invasão de células cancerígenas em ratos. Com base nesses estudos e outros, a indicação da vitamina D como profilático de determinados tumores começa a ser investigada. Contudo os resultados ainda são bastante preliminares, então, por favor, não se automedique com qualquer tipo de remédio sem antes ouvir o seu médico, ele é a pessoa certa para medicá-lo.

Várias teorias tentam explicar o déficit de vitamina D encontrado frequentemente entre pacientes com doença hepática crônica, principalmente entre portadores de hepatopatia crônica pelo VHC. Todavia o que temos de mais concreto é que, entre pacientes cirróticos, ocorre uma redução da exposição às fontes de vitamina D (raios de sol, dieta). Outros fatores, como a má absorção da vitamina D no intestino e a redução da produção de albumina pelo fígado cirrótico, podem gerar o déficit da vitamina D.
Quais as principais regras para um fígado sadio?

José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)



Vale a pena viver? Depende do seu fígado!
(Anônimo)


Nada mais pontual do que iniciar este artigo lembrando o mito do semideus e imortal Prometeus, um dos Titãs da mitologia grega. Condenado por roubar o fogo dos céus e dá-lo à humanidade, recebeu como castigo de Zeus o sacrifício de ficar acorrentado a uma rocha no Cáucaso, onde diariamente uma grande águia bicava seu fígado. De acordo com a mitologia, parte de seu fígado era comido pela águia durante o dia, regenerando-se durante a noite. Ele sofreu essa tortura por muitos dias, anos e anos até ser libertado por Hércules. Na mitologia grega, Prometeus simboliza a força e a persistência contra a opressão.


O que existe de verdade na história do fígado de Prometeus apresentada na arena de um teatro pela primeira vez por Ésquilo (poeta trágico grego) na Grécia (século V antes de Cristo)? Tudo, apesar de ser puro simbolismo. Mesmo sendo imortal e nunca ter existido, o titã Prometeus tinha um fígado idêntico aos dos simples mortais, ou seja, capaz de se regenerar. Como Ésquilo sabia que o fígado de Prometeus podia se regenerar? Não tenho a mínima ideia e nem vou conjecturar o que aconteceu há mais ou menos 2506 anos. O que eu posso explicar cientificamente sobre a regeneração do fígado é o seguinte: durante a agressão aguda do fígado por determinados agentes (vírus, álcool, drogas), parte das células do fígado (hepatócitos) são destruídas. As células do fígado (hepatócitos) que não sofreram processo de destruição irão se regenerar totalmente, dando origem a novas células e, consequentemente, expansão do conjunto das células perdidas.


O melhor modelo para explicar a capacidade de regeneração do fígado acontece no transplante de fígado intervivos. Certo familiar (pai, mãe, irmão, irmã, primo de 1º. grau) doa parte de seu fígado sadio que é removido e transplantado no familiar doente. Após o transplante, observa-se rapidamente aumento do volume do fígado, tanto no doador como do receptor, caracterizando assim o processo de regeneração.

Sabendo que o fígado é o único órgão do nosso organismo capaz de se regenerar, pergunta-se: porque ele é tão importante para que tenhamos uma boa qualidade de vida? Veja, o fígado é o órgão interno mais durável do organismo, já que foi programado para viver funcionando normalmente por mais de 100 anos, diferentemente do que acontece com o coração, rins, pulmões e cérebro. Agora, se ele for agredido continuamente, seu tempo de sobrevida vai ser alterado e aí teremos que agüentar as conseqüências.

O que devemos fazer para que o nosso fígado continue funcionando normalmente. Basta seguir, sem ser compulsivo e fundamentalista, o que chamo aqui de: “as dez regras para um fígado feliz”.


A primeira regra e a mais importante na boa funcionalidade do seu fígado é não fazer da bebida alcoólica uma fuga para os seus problemas. A ingestão diária por um período longo de mais de 80 gramas de álcool (uma dose de cachaça ou vodca e mais duas latas de cerveja) constitui-se um alto de risco de doença hepática. O alcoolismo é considerado como uma das principais causas de cirrose hepática (fígado endurecido como pedra) no mundo. Se, no fim de semana, você gosta de uma caipirinha ou de uma cerveja estupidamente gelada, beba moderadamente. Com certeza, não vai lhe fazer mal, desde que o prezado leitor não tenha nenhum problema no fígado.

A segunda regra passa por sua atividade sexual. O uso de camisinha nas suas relações vai evitar que você adquira, por exemplo, o vírus da hepatite B (VHB), agente infeccioso de fácil transmissão sexual. Esse vírus é incriminado como a principal causa de cirrose hepática em nossa região. Se você não gosta de usar camisinha ou não dá tempo de usa-la, aí é outra história. Existe até vacina contra hepatite B e você pode se vacinar. Não existe vacina, contudo, para a AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, tais como: sífilis, esquentamento ou gonorréia (blenorragia), vesículas dolorosas genitais (herpes genital), crista de galo (condiloma acuminado), mula (linfogranuloma venéreo).

A terceira regra está inserida no tratamento e controle de determinadas doenças que podem provocar problemas no fígado, tais como: obesidade mórbida, doenças da tireóide, insuficiência cardíaca, enfisema pulmonar, hepatite crônica B, C e D, diabetes tipo 2 associada a esteato-hepatite não alcoólica. Cientificamente, observa-se que parte dos pacientes adultos com diabetes tipo 2 tem um aumento significativo de doenças hepáticas, incluindo cirrose hepática, quando comparados com a população geral não-diabética. Pacientes diabéticos têm um risco aumentado em sete vezes de apresentar endurecimento do tecido do fígado (fibrose).

A quarta regra, das dez para que o seu fígado seja feliz, baseia-se no controle do seu peso corpóreo. O que acontece no fígado em conseqüência do aumento de peso? Deposição contínua de gordura no fígado, podendo ocasionar processo inflamatório agudo (hepatite) e levar a uma doença chamada de esteato-hepatite aguda (hepatite aguda por deposição de gordura). Se não controlada e tratada a obesidade, a esteato-hepatite aguda torna-se crônica e um percentual bastante significativo dos obesos desenvolverão uma cirrose hepática ao longo do tempo. Redução do peso (dieta, cirurgia) e uso de determinadas drogas podem controlar a referida doença.

A quinta regra para um bom funcionamento do seu fígado e do seu inimigo pessoal encontra-se no hábito da boa alimentação. Evite alimentos que contenham gordura animal (carne vermelha gorda, pele de frango, bacon, lingüiça, queijo amarelo, manteiga) e frituras. Em decorrência da alta concentração de colesterol nesses alimentos, o fígado usaria esta superoferta de colesterol para produzir excessivamente uma substância chamada bile ou bílis (substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado), que seria eliminada para o duodeno (primeira porção intestino delgado) e intestino (mistura-se com os alimentos para ajudar na digestão). Parte da bile seria absorvida pelo estômago e daí provocaria boca amarga e com gosto de água de lavar espingarda ou de fel. Em razão da ingestão excessiva de alimentos gordurosos, ocorreria no sangue um aumento dos triglicérides e colesterol e, conseqüentemente, deposito de gordura nas células do fígado (hepatócitos), ocasionando assim a esteatose hepática. Coma bastante peixe e frango sem pele (grelhado, assado, cozido), frutas e verduras. Só fazem bem.

A sexta regra está explícita no erro cultural e costumaz da automedicação. O uso de determinadas drogas e ervas pode ocasionar ao seu fígado, desde uma simples hepatite aguda medicamentosa, morte por insuficiência hepática fulminante até cirrose hepática. Evite tomar remédios sem prescrição médica e ervas indicadas pelos parentes, comadres e vizinhos. No estado do Pará, existe relato científico de mortes (hepatite fulminante) pelo uso do chá e cápsulas da sacaca, aquela que é considerada por alguns como a oitava maravilha do mundo.

A sétima regra está na retirada eletiva (cirurgia) das pedras da vesícula (cálculo biliar). As pedras na vesícula biliar podem comprometer o fígado? Claro que sim. Quando a vesícula biliar repleta de pedras apresenta processo inflamatório (colecistite aguda), existe uma tendência de obstruir a passagem de biles para o intestino. A bile não excretada reflui para o fígado, torna-se tóxica e vai ocasionar hepatite aguda. As bactérias responsáveis pela inflamação da vesícula biliar podem ascender para o fígado e daí podem provocar um quadro infeccioso agudo, geralmente grave, tendendo a formação de hepatite aguda infecciosa (bacteriana) e posteriormente de abscessos no fígado. Se não tratado, o paciente poderá morrer com infecção generalizada.

A oitava regra é bem atual. Não fume, o cigarro faz muito mal para o fígado. Os resultados de vários estudos revelam que o hábito de fumar acelera ou agrava uma doença do fígado pré-existente, principalmente se o fumante for portador de uma dessas doenças: esteato-hepatite (processo inflamatório no fígado provocado por deposição de gordura), hepatite crônica e cirrose hepática pelos vírus das hepatites B e C ou outro qualquer tipo de hepatite crônica. Pacientes cirróticos fumantes, independentemente da causa, apresentam um risco muito grande de evolução para câncer primário de fígado.

A nona regra é ter que fazer transplante hepático se o seu fígado, de algum familiar ou de algum amigo não está mais funcionando (cirrose hepática em fase avançada). Porque alguém precisaria fazer um transplante do fígado? É até simples explicar. É o tratamento de eleição de qualquer doença do fígado avançada, aguda ou crônica, não curável com outros tratamentos e que põe a vida do paciente em perigo ou induz a uma deterioração importante na sua qualidade de vida. Portanto, nada mais resta do que trocar o fígado doente e irrecuperável por um novo.

A última e décima regra é a mais importante de todas. Periodicamente, se você tem mais que 40 anos de idade, faça um exame clínico geral pelo menos uma vez por ano e assim o seu médico saberá como está funcionando o seu “precioso fígado”. Se tudo está bem com o seu fígado, ótimo, mas não o deixe de lado. Ele foi programado para viver mais de cem anos. Pense e comece também a cuidar do seu coração e do seu organismo como um todo.Leia neste blog artigo sobre o link entre fígado e coração.
O fígado e a tireoide
José Carlos Ferraz da Fonseca
Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)

Das inúmeras doenças relacionadas à tireoide, duas preocupam tanto os médicos como os pacientes, pois ambas estão relacionadas com a funcionalidade da referida glândula. A primeira é conhecida como hipotireoidismo e a segunda como hipertireoidismo. Várias causas estão incriminadas na disfunção da glândula tireoide, e a principal seria de origem autoimune (organismo produzindo anticorpos contra a tireoide). Pacientes portadores crônicos do vírus da hepatite C (VHC), em tratamento com interferon alfa ou peguilado, podem desenvolver doenças da tireoide, principalmente o hipertireoidismo. Em pacientes com doença hepática crônica C, sem tratamento, observa-se significativa prevalência de hipotireoidismo. A associação hepatite crônica C + doenças da tireoide é mais frequente no sexo feminino.
Os sinais e sintomas da disfunção tireoidiana são vastos e podemos citá-los por doença. De acordo com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, no hipotireoidismo (Doença de Hashimoto), observam-se: queda na produção dos hormônios T3 (tri-iodotironina) e T4 (tiroxina); aumento dos níveis do colesterol sanguíneo; aumento da tireoide; prisão de ventre; dores intensas nos músculos (mialgia); fadiga; menstruação irregular; pele seca; aumento do peso corporal; sonolência; queda de cabelo; depressão; diminuição dos batimentos cardíacos (bradicardia). Com relação ao hipertireoidismo ou tireotoxicose, destacam-se: baixos níveis sanguíneos do TSH (Hormônio Estimulante da Tireoide); aceleração dos batimentos cardíacos, mais de 100 batimentos por minuto (taquicardia); irregularidade no ritmo cardíaco, principalmente em pacientes com mais de 60 anos; nervosismo, ansiedade e irritação; mãos trêmulas e sudoréticas; perda de apetite; intolerância a temperaturas quentes e probabilidade de aumento da sudorese; queda de cabelo e/ou fraqueza do couro cabeludo; rápido crescimento das unhas, com tendência à descamação das mesmas; fraqueza nos músculos, especialmente nos braços e coxas; intestino solto; perda de peso importante; alterações no período menstrual; aumento da probabilidade de aborto; olhar fixo; protusão dos olhos, com ou sem visão dupla (em pacientes com a Doença de Graves); acelerada perda de cálcio dos ossos, com aumento do risco de osteoporose e fraturas.
O hipotireoidismo ou o hipertireoidismo podem comprometer o fígado? Sim, e, por vezes, ocasionam quadros graves de hepatite. Tanto no hipotireoidismo (Doença de Hashimoto) como no hipertireoidismo, doenças de caráter autoimune, o fígado pode ser agredido e ocasionar formas agudas ou crônicas de hepatite. Pacientes portadores de cirrose hepática sem causa conhecida podem ser vítimas das desordens da tireoide não diagnosticada devidamente. A hepatite ocasionada pela disfunção da tireoide é denominada de hepatite autoimune. O diagnóstico, geralmente, é de exclusão e se observa, além das alterações no sangue da T3, T4 e TSH, aumento das aminotransferases (ALT, AST). O diagnóstico pode ser confirmado com a presença dos anticorpos contra a tireoide e pela biópsia hepática. A maioria dos meus pacientes com doenças da tireoide com comprometimento hepático pertence ao sexo feminino e a idade média é 31,2 anos. Sempre os encaminho ao endocrinologista, visto que o tratamento correto da disfunção tiroidiana deve ser indicado pelo especialista.  
Recente trabalho publicado em revista médica científica internacional (JOURNAL OF HEPATOLOGY, 2012) revela dados interessantes com relação às doenças da tireoide e do fígado. Nesse estudo, de acordo com os autores, existe uma estreita relação entre o hipotireoidismo e a esteato-hepatite não alcóolica (leia neste blog artigo sobre a referida doença hepática). Foi encontrada uma relativa prevalência do hipotireoidismo entre pacientes portadores da esteato-hepatite. Apesar das limitações do estudo e a dependência de seus resultados serem confirmados por outros pesquisadores, provavelmente, o tratamento da esteato-hepatite estaria associado às drogas utilizadas no tratamento do hipotireoidismo.
Tenho como rotina sempre solicitar, principalmente dos meus pacientes pertencentes ao sexo feminino, as dosagens no sangue dos hormônios tiroidianos (T3, T4, TSH), mesmo que não apresentem testes laboratoriais da função hepática alterados.
Se você pertence ao sexo feminino, faça um check-up anual e solicite ao seu médico, além das dosagens das aminotransferases (transaminases), a dosagem dos hormônios da tireoide, pois as doenças da tireoide podem cursar assintomaticamente, ou seja, sem quaisquer dos sinais ou sintomas clínicos do hipotireoidismo ou hipertireoidismo.